A respeito das Inteligências Artificiais, a escritora de ficção científica e artista polonesa Joanna Maciejewska publicou a seguinte frase:
”Eu quero a IA lavando minhas roupas e minha louça para que eu consiga fazer minha arte e escrever, e não a IA escrevendo e fazendo minha arte para que eu lave minha roupa e minha louça”.
A frase causou aquelas “polêmicas de internet”, do tipo que fazem a gente perder o sono à noite, como as não-notícias do Big Brother Brasil, ou as declarações da atriz Rachel Zegler, que interpreta Branca de Neve, no filme novo da Disney, que requenta o desenho clássico de 1937.
Pode-se encarar a frase da autora como uma crítica ao trabalho intelectual que as IAs estão substituindo. Questionável se este trabalho que a IA está substituindo é mesmo intelectual - como milhares de ilustrações muito parecidas entre si, principalmente de estilo mangá ou Pixar.
Ou os textos em jornais e revistas online, antes feitos por estagiários ou jornalistas recém-formados. Hoje, muitos destes profissionais são redatores de prompts para o ChatGPT.
Voltando à Joanna, alguns comentaristas do Reddit e do X questionaram se ela tinha mesmo um ponto válido para ser discutido, ou se era só uma bobagem.
Fiquei surpreso, no entanto, quando alguém discutiu o fato de Joanna estar “empurrando” para as máquinas algo prazeroso, como cozinhar.
Ruminei durante alguns minutos (uma eternidade na era do Instagram), masquei o meu capim e concluí: parece haver outro tipo de polarização, nos dias de hoje, diferente de “esquerda x direita”. Vejo que há os “conectados” e os “desconectados”.
Conectados, sem aspas, estamos quase todos - ou pelo menos, a classe média que posta nas redes sociais. Os conectados com aspas não são somente os que ficam online o tempo todo, mas o que adotam as novas tecnologias e as incorporam em seu estilo de vida. Quem não vive sem um celular ultramoderno ou Alexa, ou o robozinho aspirador de pó.
Do outro lado, os “desconectados” são mais a declaração de um desejo, de um anseio, do que propriamente pessoas que vivem totalmente desligadas da internet, da tecnologia, das bugigangas high tech. Conheço somente uma pessoa que vive sem internet, utilizando-a somente para fazer ligações telefônicas. Pessoas como essas são vistas como esquisitas ou como fortes. Resistem à tentação de uma vida digital onipresente, mas que todos sabem, suga a alma.
É dificílimo remar contra a corrente e surfar na onda da vida off, ao menos sozinho, sem um grupo de pessoas que faça o mesmo. Aderir à vida como era antes da internet não é impossível, mas tem o seu preço. Quem o diz, também se contradiz: já vi uma moça defendendo a volta do uso de espartilhos. Ela mesma os risca, corta e costura, tudo à mão. E os usa. Tudo devidamente mostrado num perfil do Instagram.
Já disse Joãozinho Trinta: “Pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual”. Para dizer que encarar a cozinha como lugar de lazer, de conexão com as raízes familiares, de descobrir novos sabores é algo louvável e que deveria ser acessível a todos. Mas no momento - um momento longo, que vem desde a década de 1950, com os programas de TV de Julia Child -, é modinha e preocupação da classe média para cima. Para as classes altas, não, pois podem pagar quem cozinhe para eles.
É realidade de milhões de brasileiros pensar em cozinha e daí virem sentimentos negativos. Oriundos de uma tarefa pesada, cansativa e repetitiva. Em casas onde a mulher vive a rotina de dona de casa - sim, ela ainda existe - com marido no trabalho e crianças na escola, ainda é pesado lavar, passar, limpar a casa e cozinhar 3 ou 4 refeições por dia. E ainda cuidar de filhos doentes, levá-los ao posto de saúde ou médico, e tudo o mais. Muitas dessas mulheres também trabalham fora.
Essas mulheres não dispõem de ingredientes orgânicos para cozinhar, nem sal do Himalaia, nem de tempo ou dinheiro para “descobrir novos sabores”. Enfim, cozinhar, para elas, não é prazeroso, é penoso.
Pelo que conheço e converso com os meus vizinhos, o que acontece nestas famílias é um misto de necessidade e impossibilidade de sair desta situação. E também, embora pareça estranho e inconcebível para muita gente, muitas dessas famílias são evangélicas e / ou conservadoras, e querem que a família seja configurada exatamente assim. Então, se as IAs que podem lavar, passar ou cozinhar vierem a se tornar realidade para diminuir o trabalho dessas mulheres em casa, seriam muito bem-vindas e aceitas. Como foram os eletrodomésticos, que pouparam o tempo e o esforço físico destas mesmas donas de casa de uma maneira que nem mais conseguimos avaliar.
Ou tem alguém aí disposto a moer milho ou mandioca com pilões, para fazer farinha, fubá ou polvilho, só para resgatar as formas ancestrais de preparar alimentos? Com certeza, mulheres de classe média alta, mas não as das classes mais baixas.
Não fico surpreso que a frase que dá inicio a este texto, seja de uma autora de ficção científica, um gênero literário que se especializou em imaginar os impactos sociais da tecnologia sobre a sociedade. Aqui, tratam-se de impactos que somente pessoas que podem pagar irão sentir - ao menos de forma mais imediata.
Mas há outros pontos de vista, dezenas ou talvez centenas de modos de vida diferentes. Provavelmente, em países subdesenvolvidos, como o Brasil, e vários outros onde não há democracia política nem econômica, milhões e até bilhões, vivem e viverão de maneira muito parecida como era há 200, 300 anos. Cada qual com as variações regionais de meio ambiente, relevo, vegetação, clima, em desertos, tundra, pantanal, semiárido.
Com adições mínimas de tecnologia, como pessoas que cozinham em fogões de pedra usando carvão ou lenha, assistindo a vídeos no TikTok no celular. Para elas, a IA será um eco de outro mundo, onde serão possíveis veículos se deslocando sem motorista, computadores onipresentes e robôs humanoides fazendo tarefas como lavar, passar e cuidar de crianças.