Abuso de poder: um crime ainda sem nome na Vila da Constituição
Destaque da série Achados do Arquivo, processo de 1827 mostra como leis portuguesas valiam no País mesmo após a Independência
Processo de 1827 integra acervo doado pela família de Jair Toledo Veiga - Foto: Arquivo Histórico da Câmara
Um crime imerso em uma cultura jurídica não tão conhecida, cujos procedimentos, instrumentos e provisões remetem a um Brasil que, apesar de independente, ainda carregava traços de seu período colonial. Estes são os aspectos centrais que envolvem este processo de 1827, que tem como réu o Alferes João da Fé do Amaral Gurgel e como vítima um homem de nome Francisco Assis de Moraes.
Este processo integra o acervo doado pela família de Jair Toledo Veiga, disponibilizado na íntegra pelo Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara Municipal de Piracicaba e que, nesta semana, é destaque da série Achados do Arquivo. Na autuação, já fica demonstrada uma de suas peculiaridades: este é um “Auto de Livramento”, um procedimento de rediscussão e livramento da culpa ou da punição, presente na tradição jurídica portuguesa, mas especificamente nas Ordenações Filipinas.
As Ordenações Filipinas, também conhecidas como Código Filipino, é uma compilação jurídica, feita por Felipe II da Espanha, durante o período conhecido como União Ibérica, e que continuou vigente em Portugal, mesmo após a separação dos países e, consequentemente, em seus territórios ultramarinos e colônias, como no Brasil. Apesar da independência, o Código Filipino continuou vigente em terras brasileiras, em matéria penal, até 1830, quando foi promulgado o Código Penal do Império. Mas... buscava-se livramento de qual crime?
O delito, imputado ao réu João da Fé, é narrado pela própria vítima, em um requerimento remetido ao Ouvidor da Lei e ao Juiz Ordinário. Apesar de longo, o documento será transcrito aqui em sua íntegra, pois permite um vislumbre claro dos acontecimentos na Piracicaba do início do Século 19, que ainda tinha a alcunha de Vila da Constituição:
“Francisco Assis de Moraes, estabelecido no termo da Villa da Constituição com engenho e fabrica de açúcar servindo de Sargento da 1º Companhia de Ordenanças da mesma Vila, traz á respeitável presença de Vossa Excelência um destes fatos atrozes, que comprova que o sistema Constitucional prático está longe de medras (*melhorar/desenvolver) no Brasil, não porque as Autoridades superiores se não tenham empenhado em mantê-lo, e muito particularmente o Excelentíssimo Governo desta Província sempre ardente em suscitar sua observância, mas sim porque as autoridades subalternas como que juraram são observa-lo: tantas são as arbitrariedades e violências que diariamente cometem. Passemos ao fato:
Há pouco mais de 20 dias o suplicante se pôs a caminho para esta Cidade, do seu engenho, que fica além da Villa, e como tivesse de conduzir não pequena porção de dinheiro em cobre e o caminho que tinha de fazer passar por sertões desertos e expostos a incursão de pretos fugidos, muniu-se de duas pistolas, mais para infundir respeito do que para servir-se delas, tanto assim que até chegar aquela Villa, não as tinha carregado: Eis o pretexto de que se serviu o Alferes João da Fá do Amaral Gurgel, encarregado pelo Capitão Mor daquela Vila de vigiar sobre o sossego dela, durante as suas ausências, afim de vingar-se do suplicante e por suspeitar, sem o mínimo de fundamento, que este o atravessava em suas pretensões amatórias com uma pobre rapariga a quem o suplicante mal conhecia.
Chegando, pois, naquela Villa o suplicante, ainda não tinha apreado, quando dois Cabos das Ordenanças deram lhe voz de preso e obedecendo logo suplicante e conduziram o logo a cadeia, sem que, todavia, lhe dissessem o motivo da sua prisão, que foi intimada a ordem do Capitão Mor.
Poucos instantes depois voltaram os mesmos executores com ordem daquele Alferes, para o meterem de tronco de pescoço. Representou o suplicante que como cidadão que já servira os cargos da Governança e até fora eleitor de Paróquia na Província de Minas, onde antes residira, e estabelecido com propriedade de algum valor, parecia que lhe não competia um tratamento tão duro, abolido expressamente pela Constituição, quando mesmo ele fosse criminoso.
A resposta a estas representações, que os executores levaram ao dito Alferes, foi a vinda deste com uma espada nua na mão, e com uma pistola junto ao peito, e aí sem atender a representação alguma, compeliu um par de [satélites] seus ali presentes a porem uma corrente ao pescoço do suplicante e a meterem o de tronco de pé em cuja situação conservou-se o suplicante desde então, que já era noite até o dia seguinte, pelo meio dia. Foi então que o Capitão Mor, que tinha ouvido a noticia (...) mandou por o suplicante em liberdade.
Parece, pois, que uma punição rigorosa deve cair sobre o agressor: há leis que a decretam, e Vossa Excelência já estará convencido que medidas de brandura nada remediam e as diárias reincidências que diariamente se observam em todos os pontos da Província, clamam por medidas de rigor. Se a Constituição não é um nome vão, se a lei é quem rege este Império, castigue-se o delinquente e com isto se fará um beneficio público” (em transcrição livre)
Resumidamente, o Alferes João da Fé do Amaral Gurgel havia, por vingança, prendido e punido Francisco Assis de Moraes. A versão relatada no requerimento é corroborada por testemunhas, que reafirmam a punição injusta e afirmam que o Alferes andava “concubinado” com uma moça, a quem Francisco havia oferecido um pouco de vinho. O termo “concubinado” se faz presente em inúmeros depoimentos, assim como a expressão “rapariga” referindo-se, possivelmente, a uma relação (ou uma pretensão) amorosa não formalizada entre o Alferes e uma mulher jovem.
Tendo o ciúme e a vingança como motivadores, pelo menos segundos as declarações, João da Fé cometeu um crime conhecido hoje como “abuso de autoridade”, no qual fez uso de seu cargo de poder – encarregado do Capitão Mor – para satisfazer vontades, interesses e represálias pessoais.
No dia 26 de novembro de 1827, o Juiz Ordinário, José Ferraz de Campos, dá sua sentença (pronúncia), declarando o Alferes João da Fé como suspeito do delito:
“Obrigam os testemunhos deste sumário a prisão e livramento do Alferes João da Fé do Amaral Gurgel, o escrivão lance seu nome no rol de culpados e passe as ordens necessárias para ser preso em segredo de justiça” (em transcrição livre)
É neste ponto que o processo demonstra claramente os aspectos de seu contexto, afinal, subsequentemente à pronúncia é feita uma petição, na qual solicita-se a expedição de uma “Carta de Seguro” em nome do Alferes João da Fé do Amaral Gurgel.
As chamadas “Cartas de Seguro” eram provisões, ou atos de graça, concedidas em nome do Imperador (normalmente pelos ouvidores das Comarcas) para que uma pessoa se livrasse da prisão antes da decisão final acerca de um crime. Elas podiam ser “Confessativas” ou “Negativas”, nas quais se assumia ou negava o delito, respectivamente. Tais “instrumentos de liberdade” foram extintos no Brasil em 1832, quando o Código do Processo Criminal de Primeira Instância decretou expressamente em seu artigo 113 que ficavam “abolidas as cartas de seguro, e qualquer outro meio, que não seja o da fiança, para que algum réu se livre solto”.
Ainda vigente em 1827, o Alferes João da Fé do Amaral Gurgel teve a carta expedida em seu nome, e agora, como “Réu Seguro”, seguem-se os ritos do processo, com novos documentos sendo anexados aos autos– petição de livramento, de vista do sumário, termo de agravo e outros elementos de uma cultura jurídica brasileira ainda doutrinada pelas Ordenações Filipinas, de Portugal.
Por um lado, este processo, quase bicentenário, narra um crime conhecido e reconhecido, mas que a época não tinha um nome específico e nem uma lei própria. Por outro, apresenta instrumentos jurídicos pouco conhecidos, pertencentes a um contexto histórico particular. Aparentemente, os ritos processuais mudaram, mas os crimes não.