Análise sem culpa, mas é obscurantismo
A função do crítico é ajudar o leitor a entender a realidade, como se processa o jogo de interesses e quem está jogando errado, considerando-se valores universais
Para o jornalismo, acompanhar a política local e manter independência ao tecer críticas a quem quer que seja sobre o que acontece no dia a dia exige um distanciamento e uma liberdade de pensamento que às vezes é quase impossível alcançar. Uma análise sem ‘rabo preso’, como se diz, torna-se algo excepcional.
O professor Gustavo Alvim, ex-reitor da Unimep, tratou desse assunto em uma de suas teses acadêmicas, que virou livro. A razão que ele apresenta para justificar essa dificuldade é simples: tudo e todos estão muito próximos. As pessoas se conhecem, são amigas até. Tem o patrocinador, que também é aquele que vai ficar infeliz se criticado e pode cancelar seu anúncio...
Como criticar um amigo de tal forma a não causar constrangimento e ruptura nas relações de amizade? Como criticar a gestão pública se os envolvidos no trabalho administrativo da cidade estão logo ali na esquina e participam da mesma convivência social de quem critica? Como criticar o patrocinador do jornal? Crítica que pode dificultar, inclusive, a continuidade do trabalho do crítico?
O mais fácil seria convidar o amigo e resolver tudo em uma mesa de café. Sem contar que o ambiente político, como gosta de afirmar o velho Capiau, é mutante, às vezes não dá nem para discernir a posição ideológica dos seus integrantes, porque as posições se interagem e se complementam, sem se contrapor em sua essência.
A função do crítico é ajudar o leitor a entender a realidade, como se processa o jogo de interesses e quem está jogando errado, considerando-se valores universais, como a verdade, a honestidade, a transparência etc. Visando sempre avanços em direção a uma sociedade mais harmônica, com alternância de poder e democrática, sempre.
Mas, a bagunça é enorme para se compreender o jogo. Ser do PL hoje em dia ou do PT, até mesmo do PSDB, faz pouca diferença. Porque muitas vezes os vereadores votam juntos, defendendo o mesmo ponto de vista, e a gente acaba não entendendo o porquê de tanto partido político, se são todos tão iguais. Basta observar a votação do PL 136/25, que remanejava recursos do orçamento público para sanear a folha de pagamento do funcionalismo piracicabano. Os três partidos acima defenderam a mesma bandeira em oposição ao governo. No caso particular do PSDB, o partido votou dos dois lados. E o PL, que trabalhou na campanha de Helinho, votou contra o governo.
A atitude da oposição seria apenas para desestabilizar o adversário? Mas que adversário? Helinho Zanatta é do PSD, mesmo partido que hoje é de Barjas Negri, do PSDB. O PSD de Zanatta é o mesmo de Gilberto Kassab, que é da base do governo Lula, com pastas ministeriais inclusive. E o governo Lula é do mesmo partido de Rai, que é do PT, que votou ao lado do PL, que deveria ser da base de Helinho, em termos conceituais.
Por isso a gente precisa saber o motivo da discussão. Nem sempre se trata de uma questão ideológica. No entanto, pode ser. Na maioria das vezes, o exercício é apenas para a garantia de poder de um político, de um grupo, nada mais que isso. Preservar-se ou conquistar mais poder parece ser a essência do embate. O que está em jogo são interesses individuais e de grupos? Faz sentido? Mas que política é essa? É preciso avançar nessa conversa.
Aspecto ideológico
O jornalista que se propõe a fazer críticas não pode parar aí, senão cai no vazio ou no relativismo, onde tudo parece estar mergulhado e o vencedor costuma ser aquele com a melhor narrativa apenas, não é mesmo? Hoje, um exercício da imprensa é apontar onde está a fake news. E vou aqui analisar um único aspecto do posicionamento da vereadora Rai, que também é uma pessoa conhecida e que merece respeito. Por isso, a crítica é sobre pensamento e não sobre pessoa.
Durante o debate do PL 136/25, ela subiu à tribuna para defender sua tese de oposição ao projeto do governo. Cantarolou uma musiquinha da formiga: “Quem tem medo de formiga não remexe formigueiro”, ou algo assim. Argumentou, argumentou, sempre na mesma linha dos demais opositores, alegando que retirar dinheiro da Saúde e da Educação prejudicaria o atendimento à população. Como se o governo estivesse de fato tirando recursos de algum serviço essencial. Mas não estava. Fake news?
Logo depois ela começou a criticar a OSS que faz a gestão das UPAS Vila Cristina e Vila Sônia e soltou a pérola do dia ao tratar do valor pago pela entidade a uma enfermeira por plantão. “A empresa cobra R$ 500 do município e paga R$ 200 para a enfermeira. É possível isso?” Até aí, tudo bem. Supunha-se que ela tentava afirmar que havia uma extorsão, o que caracterizaria um crime, se ele existisse de fato. Mas não, o que ela estava condenando era o “lucro” elevado da empresa.
Então, o culpado para Rai pelo fato de o serviço da OSS não ser qualificado está no lucro e não na qualidade dos seus serviços propriamente ditos. Fiquei assustado, porque ela estava condenando algo fundamental para a manutenção da iniciativa privada e não a falta de fiscalização do governo para que os serviços comprados pelo município mantenham certo padrão razoável de qualidade.
Nesse ponto é possível detectar a mentalidade que rege a tese da Rai. Parecia que ela falava de uma tribuna armada em 1850, período em que se começava a conhecer o pensamento de Karl Marx, e não de uma sociedade com a dinâmica atual. Extemporaneidade!
Parece pouca coisa, mas isso fundamenta uma infinidade de teses sobre gestão pública do ponto de vista da esquerda, como a ideia de que a conta da OSS é paga pelo governo e não pelo cidadão que trabalha para a iniciativa privada e paga impostos exorbitantes para o governo. Da iniciativa privada que precisa do lucro para viver, mas que só sobra depois de todos os impostos abatidos, e que funciona como um prêmio para que ela continue operando. Será que a Rai estava condenando a essência da economia moderna? Não quero crer. Oh, te peguei, uma OSS não pode ter lucro. Se não pode, não tenho certeza disso, certamente o serviço pago deve ao menos remunerar adequadamente seus idealizadores e se gere um caixa para novos investimentos, para que eles se mantenham no negócio. Não?
Alguém poderia dizer, “ela estava afirmando apenas que havia uma discrepância muito grande na relação entre o que o município paga pelo serviço comprado da OSS, o que o funcionário que vai executar o serviço recebe e o que fica para a OSS ao final”.
Onde estão os impostos e taxas arrecadadas pelo empregador, que voltam para o governo? Rai fez os cálculos? E os custos operacionais e demais custos para fazer a estrutura funcionar e se atualizar? Sem uma contabilidade mais aprofundada é impossível qualquer julgamento sobre o que se cobra e o que se paga.
Então quer dizer que depois de tudo apurado é possível continuar afirmando o que a Rai disse? Não, porque a empresa ganhou a licitação e assinou contrato para prestar um serviço de qualidade, que deve ocorrer dentro de parâmetros éticos e de legalidade. É isso o que o município tem de cobrar dela. E isso se cobra com fiscalização e não condenando o lucro, como fez Karl Marx no século 19. Ideologia pura é o que a Rai propaga com essa tese. Não gera luz ao debate, gera obscurantismo. Mas nos dá um parâmetro para criticarmos ou não a vereadora com mais propriedade.