Bactérias super-resistentes são encontradas em aves selvagens em centro de reabilitação no litoral paulista
Um urubu recém-chegado ao Orquidário Municipal de Santos e uma coruja há dez anos em cativeiro estavam colonizados por Escherichia coli resistente a antibióticos
Coruja-listrada (Strix hylophila) identificada no estudo como portadora de Escherichia coli multirresistente (foto: Tamires Aparecida Serra Lorenzi/Unesp, campus São Vicente)
Pesquisadores apoiados pela Fapesp encontraram clones de bactérias resistentes a antibióticos em aves silvestres presentes em um centro de reabilitação. Os clones de Escherichia coli identificados têm sido encontrados em infecções humanas comunitárias e hospitalares no mundo todo e estavam presentes no trato intestinal de um urubu e de uma coruja.
Não se sabe os impactos das cepas no organismo dos animais, mas em humanos elas são conhecidas por produzir infecções em pacientes com sistema imune debilitado, com poucas opções terapêuticas eficazes. O estudo foi publicado na revista Veterinary Research Communications.
“Escherichia coli é uma bactéria comum do trato intestinal de muitos animais, inclusive nos humanos. Ela passa a ser um problema quando entra na corrente sanguínea ou causa infecções do trato urinário ou dos rins, principalmente quando acomete pessoas com sistema imune comprometido e em ambiente hospitalar. Nessas pessoas, clones multirresistentes como esses frequentemente levam à morte”, explica Fábio Sellera, professor da Universidade Metropolitana de Santos (Unimes) e um dos coordenadores do estudo.
O trabalho chama a atenção para a necessidade de estabelecer protocolos para a manutenção de animais nesses centros de reabilitação e para a posterior soltura na natureza.
“Essas instalações têm uma grande importância para mitigar os efeitos da ação humana sobre a fauna, mas em nenhum lugar do mundo existem procedimentos baseados em evidências científicas para monitorar, evitar e tratar a colonização por microrganismos resistentes a antibióticos dos animais resgatados e reintroduzidos”, adverte o pesquisador.
As análises genômicas mostraram que os genes de resistência aos antibióticos estão localizados nos chamados elementos genéticos móveis, que podem ser transferidos tanto para outros clones de E. coli quanto para bactérias de outras espécies presentes no ambiente.
“Com isso, mesmo bactérias que nunca tiveram contato com antibióticos nem com ambientes poluídos, que também selecionam esse tipo de agente, podem passar a ser resistentes. Por isso a necessidade de um monitoramento contínuo do meio ambiente e de potenciais hospedeiros”, afirma Nilton Lincopan, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e outro coordenador do estudo.
Lincopan é pesquisador do Instituto Paulista de Resistência aos Antimicrobianos (ARIES), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP.
O pesquisador coordena ainda a One Health Brazilian Resistance (OneBR), plataforma que reúne dados epidemiológicos, fenotípicos e informações genômicas de microrganismos classificados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como de “prioridade crítica”.
A classificação contempla bactérias com escassas opções terapêuticas disponíveis e que merecem medidas de contenção para não serem disseminadas, além de terem prioridade para a pesquisa e desenvolvimento de novos antimicrobianos (leia mais em: agencia.fapesp.br/38186).
O trabalho tem como primeiros autores três alunos de iniciação científica, Bruna Garcia e Matheus Silva, da Unimes, orientados por Sellera, e Guilherme Paiva, do ICB-USP, orientado por Lincopan com bolsa da FAPESP.
Aliados
As duas aves colonizadas estavam no centro de reabilitação do Orquidário Municipal de Santos, no litoral paulista. No total, 49 animais (aves e mamíferos) silvestres presentes na instalação tiveram coletadas amostras de swab retal ou cloacal.
“Por terem sido resgatados em área periurbana [transição entre área urbana e rural], esses animais estão mais expostos ao impacto humano, podendo ter contato com lixo, esgoto e poluição das cidades do entorno. Isso pode contribuir para a colonização por bactérias comumente encontradas em ambiente hospitalar humano”, aponta Sellera.
Os animais não exibiam sinais clínicos de infecção, o que reforça a hipótese de que conviviam com o patógeno sem adoecer. O urubu teve a amostra colhida assim que foi admitido no centro, apontando que já chegou colonizado pelo clone resistente. Por ter múltiplas fraturas, o animal teve que ser eutanasiado 24 horas depois de chegar.
A coruja, por sua vez, vive há dez anos no local, após sofrer uma colisão. Uma vez que tem sequelas neurológicas, o animal não pode voltar para a natureza. Na admissão, a ave foi tratada com antibiótico por suspeita de clamidiose. Pouco antes da coleta para o estudo, teve outro antimicrobiano administrado após uma cirurgia. Por isso, não se sabe se já chegou colonizada ou adquiriu a bactéria no local.
“Os centros de reabilitação oferecem uma oportunidade valiosa para o monitoramento da presença desses agentes em nossa fauna. É preciso uma mobilização global e maiores investimentos financeiros para ampliar a vigilância epidemiológica e estabelecer protocolos para esses centros, a fim de reduzir as chances de transmissão entre os animais ou dos humanos para eles”, avalia Sellera.
Para o pesquisador, testagens poderiam ser feitas durante a admissão dos animais, além do isolamento dos colonizados e tentativas de descolonização dos que tiverem essas cepas de importância médica antes da reintrodução na natureza.
Um bom exemplo pode estar no Projeto Cetáceos da Costa Branca, capitaneado pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN) e pelo médico veterinário Augusto Carlos da Bôaviagem Freire. Numa parceria com os pesquisadores paulistas, animais como os peixe-boi que são resgatados passam por uma testagem de patógenos.
Coleta de amostra de peixe-boi para testagem de patógenos bacterianos de prioridade crítica da OMS resistentes aos antibióticos, no Rio Grande do Norte (foto: Augusto Carlos da Bôaviagem Freire/Projeto Cetáceos da Costa Branca-UERN)
Os potiguares estão tentando padronizar formas de descolonização, utilizando probióticos, antes de devolver os animais ao ambiente natural. Neste estudo participam a aluna de iniciação científica Ana Clara Gales Landi e a doutoranda Thais Martins Gonçalves, do ICB-USP, orientadas por Lincopan com bolsas da FAPESP (25/03354-5 e 24/20180-8).
“Os microrganismos que vivem em animais presentes em centros de reabilitação são uma amostragem do que está circulando na natureza. Por isso, além do trabalho fundamental que prestam para a vida selvagem, esses locais podem ser importantes aliados no monitoramento de patógenos humanos”, diz Lincopan.
O trabalho teve apoio da FAPESP ainda por meio de bolsa para João Pedro Rueda Furlan, que realizou pós-doutorado na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp).
O artigo High-risk Escherichia coli global clones ST10 and ST155 in wild raptors admitted to a rehabilitation center pode ser lido em: https://link.springer.com/article/10.1007/s11259-025-10811-y.
André Julião | Agência FAPESP