Cabeçada na boneca de cera
Fake news é uma expressão relativamente simples para tentar resolver problemas complexos, com elevada dose de imprecisão
Evidente que a expressão fake news se tornou a chave que anima parte expressiva da política nacional. Ela brotou no pantanal com potencial de catalisar todos os que viviam tristes pela falta de uma ideia-fixa, torta e abrangente que lhe recuperasse o ânimo de participar do debate. É vendida até nos meios jornalísticos como o sol de Ipanema, que dá vida nova ao trabalho de pensar o dia a dia da notícia aos velhos ‘passa pano’ para o governo, como aquele craque em repetições jogando frescobol com os idiotas das ideias prontas. Porque se trata de uma expressão relativamente simples para tentar resolver problemas complexos, com elevada dose de imprecisão. De fácil uso, ajuda a enriquecer influencers.
Na universidade, eu tinha um professor que adorava Theodor Adorno pelos motivos opostos aos meus, que comecei a ler o alemão com muita suspeita e depois acabei me envolvendo melhor com sua Teoria Crítica. Enquanto o meu mestre lapidava seu marxismo aguado com as sutilezas complexas do filósofo, eu tive dificuldade para perceber a atualidade de Adorno no que diz respeito, inclusive, às críticas que ele fazia aos marxistas aguados e à sociedade como um todo. Suas ‘chaves’ eram para mim momentos de reflexão sobre as dificuldades do intelecto para sair do enrosco da linguagem, da psicologia, das matrizes históricas do pensar que cegam aqueles em busca de ideias prontas para defender o indefensável, como meu velho professor. Adorno parecia um intelectual de esquerda, simplesmente, mas era muito mais que isso. Desafiava todos os que aceitavam suas chaves e apontava os limites do pensamento em relação à prática, por exemplo. O filósofo em questão travou Marx aqui.
Mas vamos voltar às fake news, que estão contaminando a vida de todos que ainda buscam informações confiáveis no mercado de notícias. Como uma palavra-chave, ela traz consigo uma imensidade de problemas para aqueles que jogam frescobol com as ideias. Porque as pessoas que se apegam a ela, ficam grudadas, como um Macunaíma, na boneca de cera. Ela, por si só, é uma tentativa de conceito e não a resposta. Para usá-la é preciso entender o contexto e saber discernir com tranquilidade os pontos de vistas, a partir do qual se abre para o debate sobre o certo e o errado. Em um aspecto, ela expande o discurso e a reflexão sobre a realidade, em outro, ela pode cegar mesmo, como tem feito, porque a maioria das pessoas não quer entender o contexto e sim, defender uma causa, mesmo que ela esteja errada. Dou de frente novamente com meu professor marxista aguado.
O caso Nikolas Ferreira é um exemplo bem claro do que estou escrevendo. O deputado trabalhou basicamente com duas teses em sua postagem no X sobre PIX e tributação das pessoas que movimentam até R$ 5 mil na conta. Ele bem que poderia dizer que o governo seria o lobo rondando o criadouro de aves. Pela natureza do bicho, a suspeita natural é que ele atacaria as vítimas com entusiasmo, mas não significa que ele atacou. Mas, para evitar o desastre, deveria ser espantado e evidenciada a sua presença, para que as aves ficassem espertas e pudessem se desenvolver em paz. É do senso comum que todo governo no Brasil só sonha em ter mais dinheiro em caixa para fazer política assistencialista. Outro professor que tive, bem mais sagaz que o de filosofia, dizia em suas aulas de economia que a melhor reforma tributária era sempre a anterior. Porque, no entender do ilustre, todo ajuste é para avançar no bolso de quem trabalha e gera renda. Governo não gera renda e quer sempre mais dinheiro. Como? Haja aves distraídas com lobos.
A intenção aqui não é defender o estilo espeto de Nikolas de fazer política, mas ele foi feliz no seu intento, trabalhando com a linguagem e confundindo o governo. Porque existe outra informação subliminar que vale a pena dar relevo. É uma tese rodriguiana (entenda Nelson Rodrigues), de que nem sempre se sabe o porquê bater, mas quem está do outro lado sabe muito bem o porquê está apanhando. Omiti aqui sutilezas para o mundo woke, porque o tema é outro. No mundo woke, a gente bate amanhã (kkkk). E o governo sentiu a pancada, porque de fato sua credibilidade é zero perante a opinião pública quando o assunto é dinheiro, é imposto... Foi aí que o caldo azedou. O lobo tomou um tiro no peito do Zé Buscapé e ficou desnorteado, sem saber para onde ir e recuou. Seus intelectuais não encontraram uma ordem unida para se contrapor. E o governo perdeu. Mas onde está a fake news se o governo garante que não vai tributar o PIX? Pois é, aí que está o busílis. Não há fake news, mas um debate. O governo que agiu como um Macunaíma dando cabeçada na boneca de cera. Parecia meu professor de filosofia lendo Adorno. Sendo sincero, não há nada mais provocador neste texto do que esta frase que o finaliza: Em relação ao PIX, o governo agiu como um Macunaíma dando cabeçada na boneca. Ai, que preguiça!