Dispositivo desenvolvido no Brasil é peça-chave no upgrade do Grande Colisor de Hádrons (LHC)
OpenIPMC garante o funcionamento confiável da tomada de dados de detectores do Grande Colisor de Hádrons
Detalhe do tracker, subdetector do Compact Muon Solenoid (CMS) que registra a trajetória das partículas logo após as colisões (foto: Cern/divulgação)
Um equipamento concebido e fabricado no Brasil será o primeiro controlador de gerenciamento totalmente aberto para a eletrônica de detectores do Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), o maior acelerador de partículas do mundo. O OpenIPMC é resultado de parceria entre o São Paulo Research and Analysis Center (SPRACE) e a empresa Lynx Tecnologia Eletrônica e será usado em 1.000 placas no Compact Muon Solenoid (CMS), um dos dois principais detectores do colisor – e também no Atlas, outro detector multipropósito. O LHC é um anel subterrâneo de 27 quilômetros de circunferência, onde feixes de prótons colidem em altíssimas energias. Seu objetivo é investigar a estrutura fundamental da matéria e do Universo. Foi construído pela Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern, na sigla oficial em francês) na fronteira entre Suíça e França.
O SPRACE é um centro de pesquisa que atua nas áreas de ciência básica, computação de alto desempenho e inovação digital. Criado em 2003 com apoio da FAPESP, o centro viabiliza a participação de pesquisadores em física de altas energias do Estado de São Paulo na colaboração CMS.
Um IPMC (Intelligent Platform Management Controller) é um dispositivo de gerenciamento inteligente que supervisiona placas eletrônicas em sistemas de alto desempenho. Monitora temperatura, voltagem, intensidade de corrente elétrica e mensagens de erro, além de controlar estados de operação (ligar, desligar, reiniciar) e integrar diferentes componentes. É fundamental para garantir que milhares de placas funcionem de forma estável em ambientes críticos. No LHC, o IPMC é componente-chave para coordenar as unidades de sensoriamento das colisões com as unidades de processamento, que traduzem os dados em informações úteis aos pesquisadores.
O problema, até recentemente, era que os IPMCs estavam sendo providos por empresas privadas de grande porte e sujeitos a acordos de confidencialidade (NDAs, na sigla em inglês). Cada ajuste, grande ou pequeno, exigia a intervenção da empresa fornecedora, o que criava gargalos de tempo e custos – e exasperava os pesquisadores. A solução encontrada foi desenvolver um IPMC aberto, permitindo que pesquisadores configurem e adaptem o sistema livremente. Esse foi o gatilho para a criação do OpenIPMC.
“O OpenIPMC rompeu uma importante barreira: hardware, firmware e software são abertos. Ele será um componente fundamental de um sistema que processa on-line 100 terabits de dados experimentais por segundo, minimiza falhas e assegura operação contínua, permitindo que as colisões do LHC sejam observadas com o experimento sempre em máximo desempenho”, diz o físico Sérgio Novaes, professor titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coordenador do SPRACE.
O dispositivo é parte essencial da arquitetura eletrônica ATCA (Advanced Telecommunications Computing Architecture), responsável pelas funções do tracker (rastreador), que registra a trajetória das partículas logo após as colisões no CMS – cujo upgrade custará US$ 120 milhões. Padrão internacional de arquitetura eletrônica criada inicialmente para telecomunicações, a ATCA é hoje usada em áreas que exigem alta confiabilidade e grande largura de banda, como física de partículas, computação quântica e engenharia aeroespacial. As funcionalidades da ATCA dependem criticamente do desempenho do IPMC.
Tracker do CMS: atualização bilionária do LHC vai permitir a detecção de fenômenos ainda mais raros, mas também aumentar o desafio de analisar até 200 colisões simultâneas de partículas em cada evento (foto: Cern/divulgação)
“O tracker do CMS é um detector extremamente sofisticado que determina a trajetória das partículas produzidas nas colisões, fornecendo informações cruciais sobre carga, momento e vértices de decaimento. O sistema é dividido em duas partes: o front-end – módulos sensores instalados na caverna experimental, junto ao detector – e o back-end – a eletrônica de alimentação, leitura, sincronização, pré-processamento, trigger [sistema responsável por decidir, em tempo real, quais colisões devem ser registradas e quais podem ser descartadas] e controle. O back-end utiliza cerca de 750 placas no tracker e 250 placas em outros subdetectores, totalizando 1.000 placas que necessitam de gerenciamento. É aí que entra o IPMC. Ele garante o funcionamento confiável desse sistema. Em resumo, ele é o ‘gerenciador’ que assegura a confiabilidade do detector”, detalha Novaes.
A Lynx Tecnologia Eletrônica, fundada por docentes da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), já entregou o primeiro lote de 100 placas ao Cern, para testes, e prepara a fabricação de 1.000 unidades para o CMS, sob supervisão do professor Luiz Antonio Coelho, da Poli. “Fabricar as 1.100 unidades do OpenIPMC para o Cern representa não apenas um marco técnico, mas também demonstra a capacidade da indústria brasileira de atender aos mais rigorosos padrões internacionais”, celebra Coelho.
Primeiro lote de placas OpenIPMC: versão aberta do IPMC, desenvolvida no Brasil pelo SPRACE em parceria com a empresa Lynx. Diferentemente das soluções proprietárias, permite que pesquisadores acessem, modifiquem e adaptem livremente hardware, firmware e software, acelerando a inovação científica e tecnológica (foto: Cern/divulgação)
O Brasil é o berço do desenvolvimento do OpenIPMC, que começou em 2019 e foi liderado pelo físico italiano Luigi Calligaris. Nessa tarefa, Calligaris contou com apoio da FAPESP por meio de auxílio à pesquisa focado no desenvolvimento de instrumentação na modalidade Jovens Pesquisadores.
Embora projetado para o CMS, o sucesso do OpenIPMC chamou a atenção do pessoal do Atlas, o outro grande detector multipropósito do LHC. “É raro que um mesmo componente seja compartilhado entre os dois experimentos, porque eles têm arquiteturas independentes. O impacto do que fizemos foi tão grande que o Atlas também decidiu adotar a nossa solução”, observa Novaes.
Além do LHC, o OpenIPMC já está sendo implementado no ecossistema de computação quântica QSolid, parte da estratégia nacional da Alemanha, e será instalado no TRISTAN, extensão do experimento KATRIN, dedicado à busca de neutrinos estéreis. A solução desperta ainda interesse de setores como defesa, aeroespacial e fusão nuclear.
O CMS opera em um ambiente de altíssima complexidade. Cada bunch (pacote de partículas) contém cerca de 10¹⁵ prótons. E dois bunchs, trafegando em sentidos contrários, colidem a cada 25 nanossegundos. No regime do High Luminosity LHC, o upgrade bilionário atualmente em curso no LHC, haverá até 200 vértices de colisão simultâneos por evento (pileup). O tracker precisa identificar a origem de cada partícula em meio a esse emaranhado. “É um desafio científico e tecnológico gigantesco, e o OpenIPMC tem papel crucial para assegurar que o sistema de 1.000 placas opere sem falhas”, sublinha Calligaris.
Para os pesquisadores do SPRACE, o OpenIPMC projeta a tecnologia brasileira em um novo patamar. “Estamos ajudando a transformar o Brasil de consumidor em fornecedor de tecnologia crítica na fronteira do conhecimento científico”, resume Novaes.
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP