Falta de proteína na gravidez e lactação pode comprometer viabilidade de espermatozoides
Pesquisa com ratos mostrou que dieta materna carente em proteína nessas fases leva a alterações na estrutura e função do epidídimo, o que explicaria prejuízos na motilidade, viabilidade e concentração
Achado destaca como a fome e a insegurança alimentar podem afetar gerações futuras (imagem: Freepik)
Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) identificaram, por meio de experimentos em ratos, que uma dieta pobre em proteína durante a gestação e o período de amamentação pode comprometer a saúde reprodutiva na prole masculina. De acordo com estudo publicado na revista Biology Open, a restrição proteica materna ocasiona alterações na estrutura e função de um órgão do sistema reprodutor, o epidídimo, responsável pela maturação e armazenamento dos espermatozoides.
Acompanhando os filhotes até a fase adulta, os pesquisadores observaram que alterações no epidídimo estavam associadas a prejuízos na qualidade dos espermatozoides, o que pode comprometer a fertilidade dos descendentes. Os estudos, apoiados pela FAPESP, foram os primeiros a relacionar a restrição proteica materna – durante a gestação e lactação – a mudanças na estrutura e função do órgão, ajudando a identificar uma possível causa para a queda na qualidade espermática observada nos filhos de mães submetidas a essa dieta (leia mais em: agencia.fapesp.br/35473 e agencia.fapesp.br/50625).
“Cada vez mais estudos têm demonstrado que combater a fome e a insegurança alimentar hoje é também uma forma de prevenir doenças e promover o bem-estar das próximas gerações. Nosso trabalho é um exemplo disso. Além das doenças associadas aos impactos da restrição proteica materna durante a gestação e lactação de ratos, conseguimos demonstrar que há também impacto na saúde reprodutiva da prole”, afirma Raquel Fantin Domeniconi, professora do Instituto de Biociências (IB-Unesp) em Botucatu.
Estudos que relacionam a saúde da gestante com o desenvolvimento de seus filhos têm sido conduzidos nas últimas décadas, sobretudo em uma área de pesquisa denominada “origens desenvolvimentistas da saúde e doença” (DOHaD, na sigla em inglês). Há fortes evidências de que a interação gene-ambiente inadequada durante a fase embrionária e os dois primeiros anos de vida pode ser um fator importante para o aumento da incidência de doenças crônicas não transmissíveis ao longo da vida, como câncer, diabetes, doenças respiratórias crônicas e cardiovasculares.
Esses fenômenos epigenéticos têm sido estudados de modo mais aprofundado por meio de modelos de experimentação animal. “Uma analogia que eu gosto de fazer para explicar esse problema é que quando há desnutrição materna durante a fase embrionária é como se faltassem ‘tijolos’ na construção desses órgãos. Isso pode reduzir, por exemplo, o número de néfrons nos rins, células no coração e também afetar o epidídimo, como vimos em nosso estudo", explica Domeniconi à Agência FAPESP.
No trabalho, ratas prenhes foram divididas aleatoriamente em grupos que receberam dietas normais, com 17% de proteína ou com baixa proteína (6%) durante a gestação e a lactação. Nesse estudo, os pesquisadores encontraram diversas alterações no epidídimo de roedores cujas mães passaram por restrição proteica. O epidídimo é um ducto único, localizado na parte posterior de cada testículo, responsável por armazenar e transportar os espermatozoides, além de ser o local onde as células espermáticas amadurecem. Esse ducto é um órgão dependente de hormônios e exerce funções específicas que contribuem para a criação de um ambiente intraluminal adequado à concentração e à maturação dos espermatozoides produzidos pelos testículos.
“Verificamos que a restrição proteica materna promove alterações importantes no epidídimo. Além de reduzir o comprimento do ducto, a carência de proteína alterou sua estrutura e funcionamento, afetando a dinâmica dos fluidos luminais, a formação de novos vasos sanguíneos e a expressão de diversas proteínas”, relata a pesquisadora.
Foram observadas ainda alterações no epitélio, tecido que reveste internamente o epidídimo, afetando o processo de diferenciação celular e, por consequência, seu funcionamento.
O efeito das alterações ocorridas na fase embrionária se prolongou ao longo da vida dos animais. Entre 7 e 14 dias de vida, ainda no período da lactação, foi observado atraso na diferenciação celular do revestimento do epidídimo dos filhotes de mães submetidas à dieta hipoproteica. A análise do epidídimo desses animais mostrou que havia mais células mesenquimais (que possuem potencial de diferenciação) do que epiteliais.
Todas essas alterações comprometem a maturação e a qualidade dos espermatozoides, com impactos observados aos 44 dias de vida dos ratos – quando se espera que o epitélio do epidídimo esteja totalmente diferenciado e o roedor entre na puberdade.
“O epidídimo é um ducto único e longo por onde os espermatozoides transitam e amadurecem progressivamente. Quando esse ducto é encurtado, as interações dos espermatozoides com o epitélio epididimário e com o ambiente intraluminal ficam limitadas, prejudicando que o espermatozoide se torne funcional e capaz de fecundar um oócito. Não é que os roedores ficaram completamente estéreis, mas a qualidade dos espermatozoides é inferior, o que representa um potencial impacto na fertilidade”, afirma a pesquisadora.
Para Domeniconi, o achado destaca como a fome e a insegurança alimentar podem afetar gerações futuras. A pesquisa mostrou que a dieta da mãe durante a gravidez e a amamentação pode ter impactos duradouros no desenvolvimento do sistema genital dos filhos, o que abre espaço para novas investigações sobre como a nutrição nesse período influencia a saúde reprodutiva.
Ela explica que, embora seja um problema estrutural – faltam nutrientes essenciais para formar o epidídimo –, a maior parte das alterações observadas é resultado de adaptações do epidídimo para garantir que os espermatozoides amadureçam mesmo em um contexto disfuncional.
“São adaptações em cima de adaptações para que, mesmo com essa nova estrutura, seja possível que os espermatozoides amadureçam e mantenham sua capacidade de fertilizar. Afinal, do ponto de vista evolutivo, a reprodução é essencial para a sobrevivência da espécie. Mas, se até a capacidade reprodutiva fica comprometida nesses casos, é de se pensar quanto a desnutrição em fases críticas pode causar alterações profundas no organismo”, destaca Domeniconi.
O artigo Maternal protein restriction affects the differentiation of cells in the epididymal epithelium lining of 44-day-old rats pode ser lido em: https://journals.biologists.com/bio/article/14/6/bio060080/368206/.
Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP