Fontes termais submarinas podem ter originado os primeiros precursores moleculares da vida
Para testar a hipótese, pesquisadores do Brasil, Estados Unidos e Japão construíram reatores de bancada que simulam o encontro entre os fluidos hidrotermais e a água oceânica primitiva
Fonte hidrotermal Champagne, no Oceano Pacífico: embora o foco do estudo tenha sido ciência básica, a abordagem também inspira aplicações tecnológicas em eletrocatálise e produção de hidrogênio (imagem: NOAA/Wikimedia Commons)
Estudo publicado no Journal of the American Chemical Society recriou em laboratório reações químicas que podem ter ocorrido no planeta há cerca de 4 bilhões de anos, produzindo os primeiros precursores moleculares para o surgimento da vida. O experimento demonstrou que, sem a presença de enzimas, gradientes naturais de pH, potencial redox e temperatura presentes em fontes hidrotermais submarinas podem ter promovido a redução de dióxido de carbono (CO₂) a ácido fórmico (CH₂O₂) e a subsequente formação de ácido acético (C₂H₄O₂). Potencial redox é a medida da tendência de uma substância ganhar ou perder elétrons em uma reação de oxirredução. Os resultados confirmaram a hipótese de que as fontes termais submarinas teriam desempenhado papel fundamental no processo.
“A hipótese é a de que esses contrastes físico-químicos presentes nas vizinhanças das fontes termais geram uma voltagem natural – como acontece entre o lado de dentro e o de fora da mitocôndria. É essa voltagem que sustenta as reações químicas”, diz o primeiro autor do trabalho, Thiago Altair Ferreira. Doutor em ciências pelo Departamento de Físico-Química do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (IQSC-USP), Ferreira é atualmente pesquisador no Institute of Physical and Chemical Research (RIKEN), em Wako, Japão.
As fontes hidrotermais alcalinas liberam fluidos quentes (tipicamente da ordem de 70 °C), básicos (com pH entre 9 e 12) e ricos em hidrogênio molecular (H₂). Estes se encontram com a água do oceano primitivo, mais fria (cerca de 5 °C) e levemente ácida (com pH em torno de 5,5). Entre esses ambientes, formam-se paredes minerais de sulfetos de ferro e níquel, ricas em microporos e capazes de conduzir elétrons. O contraste gera gradientes naturais análogos aos que, hoje, sustentam o metabolismo celular.
“No Hadeano, haveria um oceano mais frio e ácido e, emanando das fontes hidrotermais, um fluido quente e alcalino. Só isso já produziria uma voltagem certa, comparável à que sabemos existir em processos celulares hoje em dia. O nosso experimento buscou saber se essa voltagem, por si só, conseguiria acionar uma reação de fixação de carbono. E verificamos que sim”, resume Ferreira.
O Hadeano é o éon mais antigo da história da Terra. Um éon geológico é a maior unidade de tempo na escala geológica. Pode durar centenas de milhões a bilhões de anos e é subdividido em éras geológicas. O Hadeano corresponde ao período que vai aproximadamente de 4,6 bilhões de anos atrás (quando teria ocorrido a formação do planeta) até cerca de 4 bilhões de anos atrás, quando começou o éon seguinte, o Arqueano.
Para testar a hipótese, os pesquisadores construíram reatores de bancada que simulam o encontro entre os fluidos hidrotermais e a água oceânica primitiva, com controle independente de temperatura, composição mineral e passagem de correntes elétricas – espontâneas ou induzidas. Foram utilizados minerais de ferro-enxofre (Fe-S) e suas variantes contendo níquel (Fe-Ni-S) como mediadores mineralógicos do processo. “Os minerais de ferro-enxofre e ferro-níquel-enxofre são muito semelhantes aos centros metálicos que vemos hoje em várias enzimas. Isso permite pensar num protometabolismo, um metabolismo sem enzimas, como desencadeador do processo”, afirma Ferreira.
Nos experimentos, sob gradientes de pH e na presença de Fe-S ou Fe-Ni-S, foram detectadas concentrações micromolares de ácido fórmico e ácido acético no lado “oceânico” do reator. Isso é um indicativo do acoplamento entre a oxidação de H₂ (no lado “hidrotermal”) e a redução de CO₂ (no lado “oceânico”), através da barreira mineral condutora. Trata-se de duas etapas iniciais da via de Wood-Ljungdahl.
Baseada nas descobertas do bioquímico norte-americano Harland Wood (1907-1991) e do bioquímico sueco Lars Ljungdahl (1926-2023), a via de Wood-Ljungdahl constitui rota metabólica de fixação de carbono, usando hidrogênio como doador de elétrons, na qual bactérias metanogênicas e acetogênicas convertem CO₂ em acetilcoenzima A (acetil-CoA), que possui ligações de fosfato, conhecidas por armazenarem considerável quantidade de energia, iguais às que ocorrem na adenosina trifosfato (ATP), a principal molécula responsável pelo armazenamento e transporte de energia em todas as células vivas. A via de Wood-Ljungdahl é considerada uma das vias bioquímicas mais antigas da Terra, possivelmente já ativa no Hadeano.
“Focamos em dois produtos: ácido fórmico e ácido acético. A primeira etapa – conversão de CO₂ em ácido fórmico e, depois, em ácido acético – é a limitante do processo, a parte mais difícil em termos energéticos. Nós a resolvemos usando apenas minerais”, explica Ferreira.
O estudo também mediu o papel de correntes elétricas, mostrando que correntes ínfimas, da ordem de nanoampères (10⁻⁹ A), bastaram para sustentar a redução de CO₂ com excelente eficiência. “Isso sugere que fluxos elétricos muito pequenos, mas constantes, no fundo do mar primitivo, seriam suficientes para sustentar um protometabolismo”, comenta Ferreira.
Os resultados do estudo reforçam o papel das fontes hidrotermais alcalinas na Terra primitiva, mostrando que duas etapas protometabólicas podem emergir de gradientes naturais e superfícies minerais, sem a necessidade de maquinarias biológicas complexas. “A condição inicial para a vida não é uma ‘sopa’ de moléculas orgânicas, mas ordem no lugar e no tempo certos, mantida por trocas de energia e de entropia. Trabalhamos a lógica de gradientes físico-químicos acionando reações, na presença de superfícies minerais que lembram os sítios ativos de enzimas”, resume Ferreira.
Embora o foco do estudo tenha sido ciência básica, com possível aplicação em astrobiologia (mediante a proposição de cenários para os contextos oceânicos da lua de Júpiter, Europa, e da lua de Saturno, Encélado), a abordagem inspira também aplicações tecnológicas. “A partir da importância dos sítios metálicos análogos aos das enzimas, podemos pensar em materiais e condições mais estáveis e eficazes para a eletrocatálise e a produção de hidrogênio, que é hoje uma grande aposta como alternativa energética sustentável, bem como para a redução do CO2 atmosférico, que é um problema fundamental no contexto das mudanças climáticas”, sugere Ferreira.
O estudo reuniu pesquisadores do Brasil, Japão, Reino Unido e Estados Unidos. Entre eles, o professor Hamilton Varela, orientador do doutorado de Ferreira.
“O trabalho, desenvolvido por Ferreira durante o seu doutorado, e em seguida maturado no pós-doutoramento, trouxe evidências experimentais do papel de gradientes de temperatura, pH e potencial na redução de CO₂ e abriu importantes perspectivas na área. Esse estudo foi desenvolvido no âmbito de um projeto temático do Grupo de Eletroquímica do IQSC-USP e corrobora o aspecto transdisciplinar da eletrocatálise – e a importância da pesquisa básica”, afirma Varela.
O estudo ainda recebeu apoio da FAPESP por meio de estágio de pesquisa no exterior.
O artigo Carbon reduction powered by natural electrochemical gradients under submarine hydrothermal vent conditions pode ser lido em: https://pubs.acs.org/doi/10.1021/jacs.5c01948.
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP