Formigas com “jet lag”: pesquisa mostra em insetos comportamento semelhante ao de humanos
Alterações no ciclo de luz perturbam o “relógio biológico” das saúvas e afetam a organização social do formigueiro
Formigas cortadeiras fazem a coleta de folhas para o cultivo do fungo predominantemente durante a fase escura do dia – Foto: Joana Fava Alves e Pedro Leite Ribeiro
Todas as noites, as saúvas, ou formigas cortadeiras, saem à procura de folhas. Não as comem – levam direto para o formigueiro, onde cultivam um fungo. Esse sim é o banquete.
O sistema é resultado de milhões de anos de cooperação entre espécies, calibrado pela evolução para o sistema de dia-e-noite de 24 horas que vive a Terra. Esses ciclos diários de atividades sincronizadas são vistos em diferentes níveis. Cada formiga desempenha a sua função: enquanto algumas buscam folhas, outras limpam a colônia, cuidam das mais novas ou se reproduzem.
Pesquisadores do Instituto de Biociências (IB) da USP demonstraram que perturbações nesses sistemas organizados pelo tempo geram efeitos comparáveis ao jet lag – a dessincronização que humanos sentem ao mudar de fuso horário. Resultados obtidos sugerem que a desordem temporal impõe um custo energético à colônia: os insetos se alimentam mais e coletam menos folhas.

A união faz a força
“As comunidades de saúvas têm uma estrutura organizacional interna,” afirma André Helene, professor do IB. Elas seguem normas e apresentam divisão de funções. “A colônia apresenta características pouco comuns – características que fazem com que ela [a colônia] seja muito parecida com um organismo único.”
No Departamento de Fisiologia do IB, Helene conduz pesquisas com formigas saúvas há anos. As colônias, mantidas pelo professor e seus alunos, chegam a 30 mil indivíduos. Na natureza, chegam a ter 3 milhões de participantes.

As formigas cortadeiras integram o grupo dos animais eussociais – os “verdadeiramente sociáveis”. Esses indivíduos apresentam características que os destacam: dividem o trabalho, coexistem com as gerações anteriores (suas mães e avós) e cooperam para cuidar da prole, explica o professor. Dependendo do ângulo, pode-se argumentar que seres humanos integram a eussocialidade, mas a questão é debatida.
Uma colônia de saúvas pode ter milhões de indivíduos — cada um desempenhando a sua função. Na imagem, elas cuidam do fungo Leucocoprinus gongylophorus – Foto: Joana Fava Alves e Pedro Leite Ribeiro
Coautor do artigo publicado na Communications Biology, do grupo Nature, Helene foi orientador de Mila Pamplona-Barbosa, quem primeiro assina o texto. Ela faz uma analogia: “A formiga rainha atua como um órgão reprodutor. Ela deposita ovos a vida inteira”, aponta. “É como se ela fosse o ovário e o resto das formigas estivesse fazendo outras tarefas do nosso corpo,” continua.
Jet lag
Produto de seu mestrado, Mila conta que a pesquisa trabalhou com as formigas alternando entre claro e escuro a cada seis horas, em contraste com as 12 usuais. Quando submetida a esse ciclo mais curto, os cientistas identificaram o aumento da ingestão de folhas pela colônia, principalmente durante os dias transitórios – entre o desalinhamento temporal e a reorganização.
“O formigueiro está embaixo da terra. Ele não tem acesso à luz,” aponta Mila. Entre as saúvas, os insetos que fazem o forrageamento (a coleta das folhas) são os únicos diretamente expostos ao sol. São esses os indivíduos que leem o relógio para o resto da colônia. “Assim, a colônia inteira é sincronizada,” explica a bióloga.


Esse é o objeto de estudo da cronobiologia – o campo da ciência que busca entender como os seres vivos se orientam no tempo. Os ritmos biológicos da colônia, então, são resposta da sincronização entre organismo e dia, e garantem a eficiência de um sistema social complexo. A coordenação temporal dos indivíduos é uma propriedade fundamental da vida – da célula à sociedade.
Por isso, Mila define que as formigas cortadeiras “são um modelo de estudo fascinante”, e a teoria do superorganismo ajuda a pintar a cena. Assim como humanos sentem o descompasso entre o ritmo interno e o ambiente externo, essa sensação ecoa entre formigas. A diferença é que, no caso delas, o relógio biológico é coletivo – e o custo da desordem se manifesta na organização social do grupo, na eficiência de cada inseto.
Contratempo
“A sincronização com os ciclos ambientais é importante para que a nossa fisiologia interna fique organizada,” explica Gisele Oda, coorientadora de Mila. Também docente do IB, ela explica que existe uma queda de eficiência da colônia quando ela é submetida a um padrão anômalo para a espécie.
“Um corpo está adaptado a uma rotina para que ele possa ter uma eficiência maior,” afirma Gisele. Quando sincronizados, portanto, os indivíduos realizam tarefas com menos energia e recursos. “Um organismo ou um sistema biológico é adaptável – mas eles têm limites.”

“Temos relógios biológicos. Um relógio mestre no cérebro e relógios periféricos em todos os nossos órgãos,” diz Gisele. Quando os horários são alterados, a perda de harmonia entre o percebido pelos sentidos e o esperado pelo cérebro perturba o organismo. Essa descompasso foi creditado pelo aumento de consumo de folhas da colônia de saúvas. Segundo Helene, o sistema, sob alteração temporal, é insustentável: “Eventualmente, a colônia morreria.”
A exceção, segundo a professora, seriam as enfermeiras. Arrítmicas, elas se dedicam aos filhotes independentemente da hora do dia.
Formigômetro
Para conduzir o experimento, a equipe elaborou um software de contagem de formigas. “Tivemos que desenvolver um sistema de rastreamento,” diz Helene.
O processo, segundo o cientista, foi desafiador. O formigueiro artificial, translúcido, foi monitorado por câmera. Helene explica que o vídeo, então, teve seus frames decompostos para que cada formiga fosse identificada – e para que o modelo respondesse quantas eram e para onde se movimentavam. “Muito mais difícil do que parece”, conta.
O ritmo de alimentação aumenta enquanto o de forrageamento permanece o mesmo durante períodos de dessincronização – Foto: Joana Fava Alves e Pedro Leite Ribeiro
“No trabalho, Mila conseguiu contar os indivíduos”, diz Gisele. “Mas ainda não é possível rastrear indivíduo por indivíduo.” A colônia estudada tinha entre 10 e 15 mil formigas cortadeiras. “No caso de um formigueiro tão grande, não sei se temos tecnologia para rastrear a colônia ainda”, afirma Mila.
Apesar disso, o modelo foi capaz de contabilizar automaticamente os fluxos de forrageamento e corte de folhas. O método foi fundamental para registrar a resposta ao estresse: quando mudam de ritmo diário, o ritmo da colônia também é perturbado.
O artigo The cost of re-synchronization in a leafcutter ant colony está disponível neste link.
Mais informações: afh@ib.usp.br, com André Helene; gaoda@ib.usp.br, com Gisele Oda, e mmpb@stanford.edu, com Mila Pamplona-Barbosa
Texto: Theo Schwan*
Arte: Daniela Gonçalves**
* Estagiário com orientação de Tabita Said
**Estagiária sob orientação de Moisés Dorado
Fonte: Jornal da USP





