Maria Aparecida Arruda, uma sobrevivente da queda do Comurba
Sua função era servir os hóspedes, ajudar na cozinha, atender bem as pessoas, e cumpria sua responsabilidade com desenvoltura
Esta é a história de uma menina de 12 anos que esteve à beira da morte com a queda do Comurba, em Piracicaba. Profundamente traumatizada, ela passou praticamente mais 50 anos da sua vida tentando se livrar de lembranças triste e da imagem de destroços de concreto que lhe caiam sobre a cabeça.
“Não foi fácil para mim. Há 10 anos, quando se comemorava o cinquentenário da queda do edifício, eu ainda carregava comigo um sentimento ruim e não tinha a menor disposição para falar com ninguém sobre aquele dia 6 de novembro de 1964. Só agora me sinto um pouco melhor.”
A família de Maria Aparecida de Arruda era moradora da região rural de Água Santa. Seu pai queria que a menina trabalhasse para ajudar na casa. Ela havia concluído a quarta séria do ensino fundamental e estava feliz porque havia encontrado um trabalho em uma pensão, bem no centro da cidade.
Sua função era servir os hóspedes, ajudar na cozinha, atender bem as pessoas, e cumpria sua responsabilidade com desenvoltura. Terminado o almoço, havia muito trabalho na cozinha para preparar o jantar. Não imaginou, por nenhum instante, que seu destino passava por um caminho tão escuro e pesado. Ao lado da pia, ela ouviu um barulho e logo em seguida, a escuridão.
Como o prédio fora construído ao lado da pensão, ela conhecia muito bem o arredor e os encantos de uma vida urbana. Tinho o sonho de conhecer o cinema bonito que havia sido inaugurado no prédio novo. Suas expectativas eram de dias melhores.
Mas parte dos escombros do prédio destruiu quase toda a pensão. Em algum cômodo, ela ficou sabendo posteriormente, houve morte de pessoas que não tiveram a mesma sorte que ela. Sua patroa descansava em um quarto no porão e nada sofreu. Sua salvação foi que seu patrão estava próximo dela, encostado em uma parede que não foi atingida.
Ela nunca ficou sabendo por quanto tempo esteve deitada sob os escombros e ouvindo gemidos de pessoas que poderiam estar na mesma situação que ela. “Eram gemidos de mulheres, eu conseguia distinguir.” Só se lembra que foi levada ao hospital no final do dia. “Graças ao meu patrão, eu estou viva, porque ele soube explicar aos homens do Bombeiros onde eu estava e puderam assim me tirar dali inteira. Mas foi por pouco, porque quando me vi livre dos destroços, estava próxima de um desmaio. Eu nem conseguia mais respirar.”
Pedaços de concreto pegaram sua cabeça, que precisou ser suturada, seus braços e pernas foram feridos, perdeu oito dentes da parte superior da boca com a pancada. “Até hoje carrego comigo sequelas, que não me permitem jamais esquecer daqueles momentos.” Ela foi levada de Fusca para a Santa Casa, pelo primeiro voluntário que ofereceu socorro, onde ficou por pelo menos dois dias, até que se sentiu melhor e recebeu alta. Depois, conforme a ficha foi caindo, o sentimento ruim começou. A menina Maria Aparecida tinha medo de sair de casa. Qualquer prédio alto era um fantasma a lhe aterrorizar. Ficou sabendo que as máquinas levaram com o concreto pedaços de corpos soterrados, que sequer foram identificados, de um total de 49 mortos identificados, segundo o Jornal de Piracicaba. Ela precisou de tratamento psicológico e até hoje se sente desconfortável com as lembranças desse passado que perturbou profundamente sua juventude.
Maria Aparecida mora no bairro rural de Tanquinho, onde trabalha de doméstica. Aos 72 anos, teve a oportunidade de se casar e ter três filhos, todos adultos. Leva uma vida relativamente tranquila, porque conseguiu amenizar bastante o peso da memória com a ajuda de especialistas. Quando questionada sobre o que pensa sobre o passado, ela lembra antes da proteção divina e, depois, da falta de proteção das autoridades públicas. “Nunca, passados 60 anos, ninguém sequer me procurou para perguntar como eu estou ou se preciso de alguma ajuda. Penso que eu teria direito ao menos a algum apoio por causa de tudo o que me aconteceu. Mas estou forte levo a minha vida como é possível, e posso agora tornar públicas essas lembranças que me acompanham desde que eu tinha 12 anos.”
*Texto atualizado no dia 6/11/2024, às 8h27.