MITOS DESVENDADOS (02)
3 MITOS sobre ARTE ABSTRATA, e 1 VERDADE a favor de quem não gosta dela
Ermelindo Nardin. Sem título. 1998, óleo sobre tela.
1o mito:
SÓ FAZ ARTE ABSTRATA QUEM NÃO SABE DESENHAR.
É verdade que muitos artistas, hoje, não sabem desenhar da forma realista como faziam os artistas no passado.
Nas escolas de arte, chamadas Academias de Belas-Artes, até o final do século XIX os alunos passavam por um treinamento intensivo de desenho de observação, tanto do “natural”, isto é, do que se pode observar da realidade visível:
• Naturezas-mortas: frutas, legumes, carne de caça, outros alimentos e garrafas, tachos, panelas, etc. dispostos sobre uma mesa, em uma composição ou “arranjo”;
Francisco de Goya Y Lucientes. Natureza-morta. 1824-26.
• Nu artístico: um modelo, homem ou mulher, sem roupa, posava para os alunos, em poses variadas;
• Paisagem: os professores mais “moderninhos” levavam os alunos para desenhar ao ar livre; essa não era uma prática tradicional das academias, tendo sido popularizada, entre os artistas, pelos impressionistas, ou seja, a partir de 1850;
• Ornamentos: motivos vegetais, usados principalmente para decoração
• Esculturas, especialmente estátuas gregas, romanas e renascentistas, e cópias de gravuras e pinturas de Michelangelo, Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio, Ingres, etc.
Esse treinamento era básico e todo artista que estudou numa Academia ou que aprendeu os princípios artísticos defendidos por ela passava por todo esse treinamento. Por isso, prezava o desenho como uma etapa indispensável na confecção de uma pintura ou escultura.
No início do século XX, os movimentos modernistas, chamados de vanguardas artísticas – cubismo, expressionismo, futurismo, etc. - abandonaram o desenho tradicional, pois buscavam fazer uma arte diferente da arte acadêmica. Uma das práticas abandonadas após as vanguardas foi o treinamento formal em desenho, pois copiar artistas do passado e observar o “natural”, segundo muitos desses artistas, os levaria a fazer uma arte igual ou muito parecida com a arte do passado.
Estes artistas colocavam em primeiro lugar a busca da originalidade. De criar imagens que nunca tinham sido vistas antes.
Pablo Picasso. Vidro e garrafa de Suze. 1912. Um tipo de imagem nunca visto antes.
A “livre expressão”, que preza a invenção, a imaginação e a inovação, foi muito utilizado no século XX, e desde então, continua.
Não quer dizer que muitos artistas que pintam ou praticam uma arte abstrata não saibam desenhar: o desenho de observação nunca foi “extinto” nem desapareceu.
Muitos artistas modernistas o valorizaram e nunca o abandonaram. Henri Matisse, Pablo Picasso, Giorgio Morandi, Salvador Dalí, Piet Mondrian, e muitos outros, sempre faziam desenhos de observação, naturezas-mortas, desenhos a partir de modelos, além de reinterpretações de grandes obras de arte do passado.
Henri Matisse. A Alegria de viver. 1906. Inspirada diretamente em centenas de quadros clássicos com o tema “banhistas”.
Não por acaso, todos os artistas citados tinham um grande amor pela Grande Arte de todos os tempos. Só queriam desenvolver um outro tipo de arte, diferente da arte clássica. E conseguiram.
No entanto – é preciso dizer – detestavam o sistema das Academias de Belas-Artes e lutaram, politicamente, contra ele. Segundo os modernos, o sistema acadêmico tinham regras muito rígidas, inflexíveis, que “engessaram” a criatividade dos artistas e não permitiam artistas “não-enquadrados na moldura” serem aceitos socialmente, nem no mercado de arte.
O exemplo mais gritante contra o sistema das Academias, no século XIX, é o da vida de Vincent van Gogh. De forma muito resumida, podemos dizer que não conseguiu viver de sua arte por causa do sistema acadêmico (por outras razões também, que irei explicar em um outro artigo ou vídeo, em breve).
Van Gogh queria ser reconhecido como um grande artista, criador de algo novo, mas na continuidade da Grande Arte, e não como um revolucionário rebelde. Mas vendeu somente uma tela, em vida, e só foi reconhecido depois de morto.
Mas o desenho de observação voltou a ser valorizado na arte contemporânea, com a revalorização da gravura (o sistema de impressão com cópias limitadas) como técnica. Muitas escolas e cursos universitários de artes visuais têm o desenho como disciplina. Retomando mesmo alguns pontos da arte acadêmica, embora busque resultados diferentes.
E a própria revalorização da Arte Acadêmica, por conta da internet, está trazendo de volta uma popularização maior pela arte mais realista, figurativa. Mas adaptada ao gosto moderno: muitos artistas que chamam a si mesmos de “acadêmicos”, na verdade, misturam observação do natural e de fotos com técnicas impressionistas, expressionistas e de várias outras vanguardas.
Até elementos abstratos aparecem nas obras dos chamados “neoacadêmicos”.
Obra de João Benatti, artista figurativo, com muitos elementos expressionistas.
2o mito:
ARTE ABSTRATA É SÓ FAZER BORRÕES NUMA TELA.
O artista que borra uma tela de forma aleatória é uma caricatura muito difundida por filmes e programas de televisão, que enfatiza um tipo de pintura irracional, “bagunçada”, uma arte tão, mas tão subjetiva, que ninguém entende. No contexto da piada, às vezes nem o próprio artista.
Cartum do site cartoonstock.com.
Porém, a arte abstrata surgiu como algo racional. Wassily Kandinsky e Hilma af Klint (nenhuma relação com Gustav Klimt, pintor simbolista / expressionista), dois dos principais artistas abstracionistas do início do século XX, queriam simplesmente representar, visivelmente, emoções, sentimentos e percepções que não são visíveis.
Hilma af Klint. Os Dez maiores N.o 7. 1907.
O que os nossos professores no Brasil, antigamente, nos ensinavam como “substantivos abstratos” - palavras que dão nome a seres ou coisas que existem, mas que não podemos ver, como a Poesia, o Amor, o Caos – na arte acadêmica era representado por alegorias. Por exemplo, a Arte Dramática, a Poesia ou a Justiça eram representados como uma mulher, geralmente vestida como uma musa grega, num contexto mitológico. O Amor era representado por um Cupido, uma criança com asas, com um arco e flecha. E assim por diante.
Os pintores abstratos queriam representar esses mesmos conceitos, e outros que não tinham sido representados, com elementos puros da arte visual – linhas retas, curvas, espirais, áreas de cores ou manchas, figuras geométricas, texturas e muitas outras – e não com figuras do mundo visível, como mulheres ou cupidos.
A lógica era: se um sentimento como a Alegria existe mas nós não o vemos, ele deve ter uma aparência que não tem nada a ver com o que conhecemos visivelmente.
Kandinsky. Pequenos Prazeres. 1913. Acervo Solomon R. Guggenheim Museum, Nova York, EUA.
O caminho que os primeiros artistas abstratos tomaram, ao criarem esta nova forma de representar elementos reais mas não visíveis, pertencentes a um mundo ideal, foi o de interpretar livremente as ideias de Platão sobre poliedros regulares, figuras geométricas perfeitas, também chamadas de sólidos geométricos perfeitos.
O filósofo grego ensinava que formas geométricas puras e regulares traduziam, para seres imperfeitos como nós, a perfeição do Mundo das Ideias. O tetraedro, o cubo, o octaedro, o dodecaedro, o isocaedro, seriam representações das formas que compunham um mundo a que temos acesso somente pela Razão.
Referência aos sólidos platônicos na obra Mysterium Cosmographicum de Johannes Kepler. Referência: este artigo da Wikipedia pt-br.
Como disse acima, os artistas interpretaram livremente os conceitos de Platão. Figuras geométricas em três dimensões, mas não sólidos platônicos, foram associados à racionalidade e sua expressão visual, como o cone, o cilindro e a esfera. Aliás, são estas figuras são recomendadas pelo pintor Paul Cézanne, no fim do século XIX, como formas do nosso cérebro esquematizar as figuras que os nossos olhos captam do mundo natural para então serem transpostas para um quadro. Cézanne é o principal inspirador da criação de “escolas racionalistas” das vanguardas, como o Cubismo, o Construtivismo e o Abstracionismo geométrico de Kandinski.
Cézanne, em retrato de sua esposa, 1890. O quadro: “Mulher com cafeteira”. A brincadeira entre alunos de artes visuais é: quem é a mulher, quem é a cafeteira?
Vamos lembrar também de Malevich, Mondrian, Kupka, e concretistas como Valdemar Cordeiro, Ivan Serpa, Samson Flexor, Lygia Clark e Yolanda Moholy-Nagy, (e muitos outros), artistas racionalistas, que criaram arte abstrata a partir desses princípios.
No final da carreira, Kandinsky – considerado por todo o século XX como o “criador da Arte Abstrata na modernidade” - caminhou para formas abstratas “orgânicas” - formas não-geométricas, irregulares, que se assemelham mais a organismos vivos. Que possui muita relação com a obra de Joan Miró.
Miró e Klee, embora não fossem inteiramente abstratos, praticaram uma arte que era mais “informal”, que continha muito mais elementos irracionais e orgânicos, e muitas vezes, sem relação com elementos da realidade visível.
Kandinski. “Azul Celeste”, 1940. Parece Miró? Sim, o próprio Kandinski admitia a inspiração, e agradecia ao colega.
Nos Estados Unidos, logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, surgiu a obra de Jackson Pollock e seu “expressionismo abstrato” ou “pintura de ação” - a “figura do mundo visível” ou mesmo a “forma do Mundo das Ideias” estão completamente ausentes. As cores estão aplicadas na forma de respingos e borrões. Mas não estão dispostos de forma aleatória.
O objetivo de Pollock era formar padrões com a tinta. E hoje, os padrões gerados por ele, descobriu-se, seguem um padrão da geometria fractal, a chamada “geometria do Caos”. Ou seja, sabemos que há Ordem até no que nos soa como Caos, e há ordem no caos aparentemente aleatório de Jackson Pollock.
Jackson Pollock. Convergência, 1952.
Na Europa, na mesma época, aparece o movimento dos “tachistas” - “tache”, em francês, quer dizer “mancha”. São obras feitas com manchas aplicadas com gestos expressivos. E essas obras também não reivindicam ter sentido pois não “representam” nenhum objeto visível. Entre os europeus, Antoni Tapiés, Emil Schumacher e Karel Appel seguem essa estética, no Brasil, Manabu Mabe e Tomie Ohtake.
Tomie Ohtake, “Pintura’, 1969.
Infelizmente, artistas que não compreenderam o motivo da origem das várias “artes abstratas” - você viu, não há somente uma – acreditam nas piadas da imprensa, de filmes e desenhos animados, e passam a borrar telas e fazer pinturas “sem sentido”, somente com manchas e borrifos, e como qualquer vigarista, passam “gato por lebre” e enganam quem está disposto a ser enganado, a cair na lábia.
Portanto, nem sempre a arte abstrata são “borrões” e “manchas” numa tela – embora às vezes seja.
3o mito:
“É TÃO FÁCIL QUE ATÉ O MEU SOBRINHO DE 5 ANOS FARIA”.
Ligar a falta de habilidade artística a crianças, loucos, pessoas de culturas ditas “primitivas” e outras pessoas que se consideram “inferiores” é uma prática que denota, no mínimo, preconceito e falta de informação.
É claro que especialistas sérios da Arte não colocam em pé de igualdade Leonardo da Vinci e uma criança em idade escolar. Mas hoje reconhecemos qualidades em desenhos infantis, em desenhos de pacientes de instituições psiquiátricas e também em arte de povos chamados até pouco tempo de “primitivos”, como os aborígenes australianos, os vários povos indígenas das três Américas, africanos, os inuit do Canadá e Groenlândia (antes chamados de “esquimós”), e outros.
A outra questão é que a criança sempre desenha com objetivo de formar um sentido bastante claro, ao menos para ela. Se perguntamos a qualquer criança o que significa seu desenho, ela responderá com propriedade, com um significado bem exato, e se estiver bem à vontade, nos contará uma história a partir do seu desenho.
Por outro lado, o artista adulto, profissional, que produz arte abstrata, não fecha um sentido único para a imagem que produz. Hoje, é desejável e se espera dos artistas que o significado da obra não seja único - embora possa haver um significado particular para o artista.
Sabe aquela frase “Criamos o filho para o mundo?” Em arte, usamos a ideia desta forma: “Colocou no mundo, a obra não é mais do artista”.
Quanto ao espectador, procura-se estimular a descoberta e construção de sentido a partir da imagem apresentada. Nem sempre a obra ajuda… mas não podemos nunca dizer que faltou ao público imaginação para contar a sua própria história - e dar seu próprio sentido - para uma obra de arte.
… E 01 VERDADE A FAVOR DE QUEM NÃO GOSTA DE ARTE ABSTRATA.
Você não precisa ficar envergonhado em procurar figuras num quadro abstrato.
Procurar figuras numa composição abstrata é absolutamente normal – pois o nosso cérebro é programado para fazer isso.
No passado da espécie humana, procurar figuras numa paisagem aparentemente desordenada era algo vital – você tinha que estar atento para procurar animais predadores o tempo todo no meio do capim, das folhas das árvores, das pedras, na água, enfim, em todos os lugares.
Infelizmente, mas isso é um fato, também era vital reconhecer os rostos humanos de uma tribo inimiga no meio da paisagem.
Da habilidade de formar a figura de uma onça ou de uma pessoa no meio de folhas altas de capim dependia a sobrevivência do “apreciador de arte” da Idade da Pedra.
Cena do filme “2001, uma odisseia no espaço”, de Stanley Kubrick.
A habilidade de visualizar figuras onde não havia intenção de representá-las é chamada hoje pela psicologia de “pareidolia”. É o que explica também vermos figuras de elefantes e cachorros no contorno de nuvens, ou figuras mitológicas em constelações, ou ainda, imagens de Cristo ou Nossa Senhora em manchas de café, troncos de árvores e fotografias aéreas.
A psicologia da Gestalt explica-a como a tendência do nosso cérebro de fechar formas que nos parecem abertas, como figuras geométrica e rostos. Por isso enxergamos rostos em um automóvel, segundo a teoria. A teoria bayesiana (dom matemático Thomas Bayes) diz que o cérebro tenta configurar imagens desconhecidas a experiências visuais anteriores, componenentes de um repertório.
“Cristo” em tronco cortado, na cidade de Itaquiraí, no Mato Grosso do Sul, em 2020. Fonte: site Alto Acre
Essa habilidade está presente até hoje na nossa “programação” cerebral – e 1 milhão de anos da sua presença na espécie humana não irão, biologicamente, sumir num piscar de olhos somente porque alguns artistas ficam enraivecidos pela “teimosia” e “ignorância” do público em formar figurinhas, carinhas ou paisagens a partir de suas composições abstratas.
Outra prática, esta cultural, que mostra nossa necessidade de fechar um sentido para tudo, é a narrativa dos caçadores. Em busca de um animal ou rebanho, eles reuniam pistas do solo, das árvores, do capim esmagado, cheiros, etc. Essas pistas não eram “figurativas”, não eram desenhos dos animais, elas eram “abstratas” - sinais visíveis de um animal que, no momento, estava invisível.
Esse rastros – indícios, sinais, algumas pistas quase imperceptíveis - eram reunidas pelos caçadores, que reconstituíam o caminho por onde o animal tinha passado. Essas reconstituições do caminho dos bichos foram as primeiras histórias criadas pelos seres humanos.
Formar sentido, encontrar um significado para tudo, são características muito humanas e não será diferente com obras de arte.
David M. Kessler, “Mystifying Abstract Painting”.
A outra coisa é que a maioria dos especialistas e artistas hoje defende que a arte contemporânea baseia-se no “jogo”, ou seja, o artista propõe ao espectador que este interprete – atribua um sentido – da sua maneira a obra em exposição. A interpretação é sempre aberta e cada espectador irá encontrar um sentido diferente de outro.
Então, por que alguns artistas chamam de “ignorantes” os espectadores que não entendem sua obra? Dentro dessa nova mentalidade da arte, não há “certo” nem “errado”, somente “jogo”, “brincadeira”; a obra é sempre “aberta” e não há limites nem regras para o sentido que o espectador queira atribuir à obra de arte – inclusive o de jogar o jogo de “encontrar figurinhas” numa obra abstrata.
Toda a Arte que ainda faz relação entre formas que não conseguimos ligar ao mundo visível e um significado interior, expressando valores, ideias, sentimentos e sensações, ainda pode ser chamada de arte abstrata no sentido que Kandinsky, Mondrian, Malevich, entendiam.
A Arte que utiliza formas não reconhecíveis e recusa um significado, declarando “sou uma obra de arte, não existe relação nenhuma com o mundo exterior ou o mundo interior”, já não é mais arte abstrata e sim arte concreta. Quando chegamos a imagens, chamadas pelos especialistas de “concreções”, entramos no reino da Arte Contemporânea.
Dialogando com o texto abaixo, assista ao meu vídeo sobre Kandinsky, o artista que inaugurou a Arte Abstrata na arte moderna.
Confira vídeos sobre arte no canal Apreciando Arte, no YouTube.
Leia o primeiro artigo da série “Mitos Desvendados”, sobre Almeida Jr., clicando aqui.