Novo modelo simula condições de habitabilidade de antigos lagos marcianos
Estudo do Laboratório de Astrobiologia da USP aponta para possível viabilidade de microrganismos ao explorar proteção ao ultravioleta fornecida por íons de ferro em água líquida
Ilustração de como teria sido a cratera Jezero, em Marte, bilhões de anos atrás (imagem: NASA/JPL-Caltech)
Pesquisadores associados ao Laboratório de Astrobiologia da Universidade de São Paulo (AstroLab-USP) desenvolveram um novo modelo que permite estimar a sobrevivência de vida microbiana sujeita a radiação ultravioleta em água líquida com diferentes concentrações de íons de ferro. A ferramenta teórica é relevante para simular a habitabilidade de lagos que devem ter existido na superfície marciana primitiva, há mais de 3 bilhões de anos.
O estudo foi publicado na revista Astrobiology e desenvolvido no âmbito de dois projetos financiados pela FAPESP, um Auxílio Regular e um Temático. Os pesquisadores exploraram como íons de ferro (Fe+3) podem proteger microrganismos em água líquida ao absorver radiação ultravioleta de tipo C, que a atmosfera rarefeita marciana não bloqueia – e é especialmente nociva à vida.
Desenvolvido a partir de experimentos com a levedura Saccharomyces boulardii, um probiótico comumente utilizado na restauração da flora intestinal, o modelo mostra que microrganismos poderiam ter sobrevivido à incidência de ultravioleta nos antigos lagos de Marte.
A literatura científica já vem detalhando a capacidade protetiva do ferro presente no regolito que cobre a atual superfície seca de Marte. “E pesquisas também já examinaram a proteção ao ultravioleta dada pelo ferro em soluções aquosas, mas utilizando uma modelagem muito complexa, difícil de ser aplicada”, explica o engenheiro químico Gabriel Gonçalves Silva, pesquisador no AstroLab.
Primeiro autor do artigo, Silva esclarece que esses modelos anteriores não permitiam estimativas detalhadas da viabilidade de microrganismos com ajustes finos para níveis de radiação e concentrações de íons. “Queríamos uma modelagem simples que servisse a esses propósitos”, diz.
Para desenvolver o modelo, os pesquisadores colocaram amostras de S. boulardii em soluções aquosas com diferentes concentrações de Fe+3. Depois, submeteram as amostras a crescentes níveis de radiação ultravioleta para medir a taxa de sobrevivência dos microrganismos. A levedura foi escolhida como modelo porque é bastante sensível ao ultravioleta e suporta alta acidez – tanto é que passa pelo suco gástrico quando aplicada em tratamentos da saúde digestiva.
Os experimentos mostraram que mesmo uma concentração relativamente baixa de íons de ferro é capaz de proteger a levedura da radiação ultravioleta perto da superfície. Os microrganismos foram capazes de sobreviver à incidência do ultravioleta o suficiente para que sua taxa de reprodução compensasse as mortes causadas pela radiação. “Nessa conta, entra não apenas quanto o ferro protege, mas também quanto os microrganismos demoram para se reproduzir e manter a população estável”, ressalta Ana Paula Schiavo, pós-doutoranda no Instituto de Química da USP e coautora do estudo.
Para testar a validade do modelo, os pesquisadores compararam suas predições de viabilidade dos microrganismos com as observações da taxa de sobrevivência da levedura nos experimentos. Aplicado a simulações dos lagos marcianos, o modelo aponta que sua profundidade mínima habitável pode ter sido de apenas 1 centímetro para a levedura testada – muito próxima da superfície – e de cerca de 1 metro para outro microrganismo muito estudado no contexto marciano, o Acidithiobacillus ferrooxidans. “O modelo nos dá uma aproximação das condições de habitabilidade dos lagos marcianos”, diz Schiavo.
Na superfície marciana atual, a presença de jarosita, um mineral formado em água líquida com alta acidez, é um dos indícios de que Marte já teve lagos em um passado remoto. A cratera Jezero, explorada pelo jipe Perseverance da Nasa, provavelmente já abrigou um lago de até 30 metros de profundidade. A jarosita também indica que os lagos marcianos tinham um teor considerável de Fe+3, que acidificam a água.
Por isso, o resultado do estudo reforça a hipótese de que lagos marcianos primitivos foram habitáveis, pois provavelmente forneciam proteção contra o ultravioleta.
Os restos de um antigo delta na cratera Jezero, em Marte, que o rover Perseverance da Nasa explora em busca de sinais de vida microbiana fossilizada (imagem: ESA/DLR/FU-Berlim)
Para Dimas Zaia, professor da Universidade Estadual de Londrina e pesquisador em química prebiótica, o estudo demonstra que microrganismos poderiam ter sobrevivido no ambiente marciano apesar das condições extremas de radiação existentes. “É um relevante suporte científico para a procura de formas de vida em Marte”, avalia.
“Nosso grupo de pesquisa tem dado grande enfoque a organismos resistentes à radiação ultravioleta, pois essa fonte de estresse é importante em regiões de alta atmosfera da Terra e em ambientes extraterrestres, como Marte”, explica Fabio Rodrigues, diretor do AstroLab e coautor do artigo.
Além dos pesquisadores da USP, também assinam o trabalho cientistas da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e da Universidade Paulista (Unip).
O artigo Modeling photoprotection of ultraviolet C radiation by ferric ions and implications for the habitability of ancient martian lakes pode ser lido em: www.liebertpub.com/doi/abs/10.1177/15311074251399206.
Danilo Albergaria | Agência FAPESP *
* Danilo Albergaria é bolsista de Jornalismo Científico da FAPESP vinculado ao AstroLab.




