O passado pode ser uma bomba
Daquelas que explodem na sua cabeça ou no seu fígado. Escolha a que lhe apetece mais.
Quando se estuda História, ou ao menos nos encantamos com “histórias da História”, corremos o risco de cair na nostalgia. Os nossos professores de cursinho ou do Ensino Médio repetiam, ad nauseam, que “quem não estuda História corre o risco de repetí-la”. Nós, alunos insensíveis de uma época individualista, ignoramos os professores que “queriam abrir nossas cabeças”; ao menos na internet, em redes sociais e grupos de Whatsapp, recorremos ao passado para nele se refugiar, procurando consolo, “cantamos e andamos” para consequências mais amplas do nosso prazer em sonhar com o tempo dos cachorros amarrados com linguiça.
Por isso usei a palavra “risco”, há perigos reais e imediatos em frequentarmos o Túnel do Tempo. Grandes tentações nos esperam bem na porta, e nelas caímos. Pois, em busca de consolo, fazemos concessões à burrice e à preguiça, tudo em busca de um lugar melhor para viver, mental e espiritualmente.
Idealizar o passado, ou seja, transformá-lo numa época que seja ideal, perfeita, sem defeitos, é uma operação psicológica não só necessária para o nostálgico: é uma obrigação, um dever de estado. Na cabeça do nostálgico, suspirar por cidades de 1825 em que não havia poluição nem engarrafamentos de automóveis é uma maneira de denunciar os males da modernidade. Mesmo que viver na era dos carruagens e cavalos implique, ao menos na linha cronológica deste lado do Multiverso, no risco de morrer por causa de um prego enferrujado e da ausência de uma farmácia que tenha penicilina nas prateleiras.
Divido meu fígado entre a diversão, a pena e porque não dizer, a impaciência, quando vejo pessoas suspirando, ou lamentando nela não viver, sobre a época monárquica brasileira, em especial sobre o Segundo Reinado, e mais ainda, sobre a figura de D. Pedro II. Tendo lido alguns memes, textões de Facebook e visto vídeos de historiadores como Rafael Nogueira, alguns outros com clickbaites como “isso a Globo não mostra” ou “ninguém contou pra você” (a versão século XXI do “professor que quer abrir a sua cabeça”), os suspiradores pelos “bons tempos” já adquirem o suficiente para idolatrar o Imperador, mostrando números supostamente verdadeiros de que o país era uma potência em franca ascensão, que a qualidade de vida era muitíssimo melhor que a de hoje, que a educação era exemplar, que os valores morais eram mais elevados e praticados, que o Império só não proclamou a abolição da escravatura antes porque D. Pedro II era pressionado pelos barões do café malvadões, e que acima de tudo isso pairava o exemplo maior do Imperador, amante e incentivador das Artes e da Ciência.
Em resumo, uma Época de Ouro de um verdadeiro Éden, do qual fomos expulsos com o golpe militar que implantou a República.
Mas estes ainda são mansos. Existe o nostálgico patológico, este mais perigoso, porque sua nostalgia está sempre acompanhada de um punhado de ideias políticas mal-amarradas, que ele chama de ideologia – e tanto faz se ele a chama “de esquerda” ou “de direita”.
A idealização torna tudo melhor. Porque parte de um amor, que como dizia o Apóstolo, tudo crê, tudo suporta, tudo perdoa. Na operação afobada, trôpega, de cantar as maravilhas de seu amor, o nostálgico pode até falar da verruga da amada, mas dirá que, por isso, o charme dela aumenta. O nostálgico patológico, porém, irá negar a existência da verruga e dizer o quanto estão querendo denegrir a imagem da amada, que é uma manobra para não valorizarem a sua beleza, que querem acabar com ela e com ele, etc.
Você já deve ter entendido, mas é preciso dizer às claras: no perfil que traço acima, se encaixam os nostálgicos patológicos que idealizavam o período do regime militar brasileiro de 1964-1985. Eles existiam pelo menos desde o fim do regime, e foram fermentando seu ressentimento por longos anos. O taxista que dizia que o Brasil precisava de um ditador para se tornar uma potência “porque o Brasil é cheio de riquezas” e o estrangeiro que as explora, o eleitor do Enéias Carneiro (“Meu nome é Enééééias”) e o tiozão do churrasco que dizia que a Dilma Roussef era uma vagabunda porque fez parte de um grupo de guerrilha armada contra os militares, ganharam uma identidade de grupo, com nome, direção e uma causa pela qual se bater quando Jair Bolsonaro apareceu como opção política ao cargo de presidente da república, lá pelos idos de 2017. Por isso hoje são conhecidos como bolsonaristas.
Falar do Milagre Econômico da década de 1970, o combate contra os comunistas e a morte de criminosos pela polícia, uma época onde supostamente os valores cristãos eram mais praticados e “não havia pouca vergonha na TV”, ser nacionalista ferrenho e acreditar que “o Brasil tem muitas riquezas”, que “aqui não tem terremoto, nem furacão, nem vulcões”, fazem parte do pacote do nostálgico patológico de direita.
Vivem a partir de uma mitologia que torna perfeito o passado da ditadura militar, que no seu entender “salvou o Brasil dos comunistas” de Jango Goulart, em 1964; que Jair Bolsonaro teria trazido de volta toda a firmeza e autoridade moral as quais os militares trazem consigo por natureza; e só não levou o Brasil a ser uma potência econômica porque os petistas e Lula não deixaram.
Triste é ver que, mesmo depois de provado que não era nada disso, que Bolsonaro formou sua quadrilha própria, com o apoio dos filhos, amigos e seguidores cegos, tendo sido corrupto como tantos outros, e tentado dar um golpe de estado para implantar uma ditadura, tenha ainda mantido uma base fiel de discípulos, crentes inamovíveis em uma verdade absoluta centrada num cristo político, humano ou desumano, dependendo da lente que o veja. Um homem bastante imperfeito, incapaz de cumprir quaisquer promessas, que de Messias só tem o nome.
Mas, talvez por esta você não esperasse: há também os nostálgicos patológicos de outro tipo. Cultuam o passado, também com motivação política.
No nosso trágico mundinho brasileiro onde o cérebro é só um coadjuvante, é corrente dividir os personagens políticos entre os de direita e os de esquerda.
Bolsonaristas são de direita. Lulistas, petistas e lulopetistas são de esquerda.
Se houvesse seriedade por aqui, saberíamos o quanto ambos os grupos estão distantes dos conceitos sérios de “direita” e “esquerda”. Com tais conceitos, os grupos guardam somente a relação necessária para fins de propaganda, ou seja, o necessário para vender o Messias que mais lhe agrada, e que irá, em seus corações, multiplicar o peixe que lhes está vendendo.
Mas, voltando, além do nostálgico patológico do tipo bolsonarista, há ainda o tipo lulopetista. Nem é necessário ser filiado ao PT para sê-lo: basta acreditar em umas tantas “verdades” e você fará parte de um grupo que transcende partidos, coligações ou outras instituições como sindicatos e ONG's / Oscip's.
A operação psicológica é a mesma do bolsonarismo. Um punhado de frases que possuam alguma ligação entre si, um punhado de lacrações de uma cartilha de duas páginas, no máximo, um inimigo contra quem lutar, odiar e dirigir insultos nas redes sociais, um líder a quem seguir, e pronto.
Por mais que aqueles do grupo, um pouquitinho só mais letrados, gritem “defendemos um socialismo científico” e que pessoas afirmem do alto de seus diplomas de pós-doc que “somente um esquerdista pode estar do lado dos pobres, de verdade”, as “verdades” que são gritadas nas redes sociais e nas aglomerações na av. Paulista são máximas elevadissimas como “Ele não”, “Bolsonaro está do lado do patrão”, “Anistia não”, “Feto não é mãe”, “Fim da Escala 6x1”, “A vida é mais que trabalho”, e a cereja do bolo, “Cuba é o nosso exemplo de resistência”.
Cuba é um exemplo patente da nostalgia patológica de lulopetistas. Defendida desde a década de 1960 como o Éden do socialismo, o paraíso onde todos são iguais porque todos miseráveis igualmente, mas hipoteticamente com médicos, hospitais e equipamentos melhores que os de países desenvolvidos. Que não se dobraram aos “estadunidenses” e que resistem, apesar do bloqueio dos EUA à ilha; reverenciar a praticidade dos cubanos em preservar os carros dos anos 1940, 50 e 60, faz parte de um dos quesitos para pertencer à seita. Uma nostalgia involuntária oferece-se aos que se dirigem à Cuba, em busca de diversão e belas paisagens, descendo em Havana e verem nas ruas circulando Studebackers, Buicks, Cadillacs e Plymouths.
No meu planeta, a ideia sadia de uma viagem de férias, na qual você sai de casa para se divertir, não inclui a contemplação da miséria, pobreza e mazelas de outros seres humanos, verificar pessoalmente nas ruas prostitutas oferecendo serviços a turistas sexuais, além de saber que todos com quem vai cruzar no país, na prática, passam fome. A não ser, é claro, que os turistas que tem Cuba como destino sejam todos, sem exceção, movidos pelo interesse exclusivo em serem solidários com o povo cubano e levar-lhes dólares para minimizar um pouco sua miséria. Talvez eu não saiba como são todos beneméritos, e que estejam viajando com objetivos humanitários, com o objetivo de reportar o sofrimento de uma sociedade socialista quase sem falhas, que “falta isso” para ser perfeita, por culpa de uma sociedade capitalista que a oprime. Contemplar carros antigos, lustrados e novos, como se estivéssemos no meio do filme “De Volta para o Futuro I”, passeando por avenidas em pleno século XXI, seja uma parte esperada e consentida do delírio coletivo.
A nostalgia patológica lulopetista não se resume a essa mentalidade da Guerra Fria, opondo “capitalismo dos EUA” ao “socialismo da URSS” ou “exploração internacional do trabalho”. Há a mitologia nacional do heroi proletário nacional, o próprio Lula, que deu origem à série. Lula é outro Messias, dos que a própria esquerda denunciava nos anos 70, 80 e 90 como “salvadores da pátria”. Mas este é legítimo, pois “veio do povo”, um encaixe perfeito do estereótipo do pobre brasileiro mais sofrido: retirante, nordestino, que migra para o Sul Maravilha com a família para fugir da seca e da miséria, que torna-se operário, e conscientizando-se das lutas políticas de sua classe, torna-se sindicalista; com seus próprios esforços, estuda, candidata-se várias vezes para o posto executivo mais alto da nação e por fim, reúne junto de si vários partidos e movimentos sociais “que querem o bem do Brasil” para distribuir justiça social como o primeiro Presidente da República de origem humilde, pobre.
“Nunca antes neste país” é a frase de propaganda dos dois primeiros mandatos de Lula, e define bem o lema de uma “Época de Ouro”, em que tudo de bom, belo e verdadeiro foi realizado. Um época dourada que se estende até os dois mandatos de Dilma Roussef, que só se interrompeu porque, nesta mitologia patológica, Dilma, por ser mulher, incomodava, por isso, teve que ser derrubada com um Golpe – que é como chamam o processo de impeachment. A Lava-Jato, narram, é a reação da direita, que “veio com tudo” para cima de Lula, chegando a conseguir a sua prisão – injusta, é claro. Mas a verdadeira justiça foi feita – não só Lula foi solto, mas todos os “companheiros”, de partido e de negócios. O povo reconheceu as mentiras, e em triunfo, reconduziu Lula à presidência pela terceira vez. A democracia venceu porque Bolsonaro perdeu e Lula ganhou.
Ele passa a ser o Grande Democrata, que avaliza a democracia somente por se sentar na cadeira presidencial. Ainda mais, passa a ser o Grande Vovôzinho (parente do Grande Irmão), uma pessoa querida, que prestou grandes serviços à família, ops, à nação, é experiente e que “passou por muita coisa”, fofinho e cuti-cuti. É tolerado em suas falas como o vovô com demência, que fala o que quer no churrasco mas que precisa ser amado, né, pois, afinal, “ele é seu avô”.
Consolar-se com o passado é tão legítimo quanto consolar-se com outras formas culturais humanas – a religião, a ciência, os vícios ou a prática de virtudes. Mas para quem estuda um pouquinho - e nisso dou razão, mesmo que parcial, aos professores de História do cursinho – percebe que colocar todas as suas fichas nesta casa do jogo pode ser uma armadilha que trará decepção certeira, líquida e garantida. Pois sempre há imperfeições quando aproximamos a lupa - alegrias e sofrimentos, belezas e feiúras, heroísmo e traição - de todas as épocas. Não sendo possível melhorar a sociedade, pelo menos não repetir alguns dos erros do passado já é um grande feito.
Mas sei bem que esses professores tinham uma “era de ouro” como um guia, um norte para onde olhavam, e é com esta parte que discordo. O maior dos mitos da esquerda, que se Karl Marx não inventou, ao menos travestiu de ciência, até onde se consiga acomodar uma profecia no campo científico: o comunismo, o estágio histórico da sociedade humana em que não haveria, ou não haverá, luta de classes. Em que todos os seres humanos colaboram entre si, onde não há guerras, a paz é definitiva e absoluta, e os únicos adversários são os elementos da natureza (se você lembrou da música de John Lennon, “Imagine”, saiba que não é coincidência). A versão marxista do Éden, o Paraíso terrestre sem Deus. Um futuro muito, muito distante, tão distante quanto as fantasias de Star Wars, e tão, ou mais, escapistas.
Perceba que o comunismo, o “paraíso marxista”, situa-se no futuro, e não no passado. Uma “saudade” do futuro tem relação com o nostalgismo patológico que você está defendendo? Sim, porque o Jardim do Éden, “terras onde corre o leite e o mel” ou “terra sem males”, nesta vida ou além, como os Campos Elísios, a Cocanha, o Paraíso terrestre de Santo Amaro, a Ilha dos Amores de Camões, além dos Paraísos celestes cristão e muçulmano ou até um paraíso filosófico como o de Rousseau, uma época hipotética onde não existia “meu” e “teu”, reverberam neste mito do “paraíso socialista” do fim dos tempos.
Acreditam os crentes de esquerda que seja possível uma terra sem males, num futuro distante, onde os humanos, finalmente, não tenham defeitos e sejam todos irmãos, recebendo todos os seus direitos de maneira igualitária, de forma bastante ingênua, pois provisoriamente depositam sua esperança nos líderes que “sabem mais que eles” dos passos como concretizar esse futuro, e num presente eterno, são explorados tão maquiavelicamente quanto reacionários que creem numa “Era de Ouro”, seja o regime militar brasileiro, seja a Idade Média cristã, seja o período de Jair Bolsonaro, como se a suposta dignidade e riqueza nacionais destas épocas fossem restauradas se seus valores também o fossem.
Tanto o lulopetista-esquerdista, ou o bolsonarista-reacionário, consomem o passado com a paixão de uma fome desesperada, como uma bomba de padaria. Penso naquelas antigas, transbordando de creme, enormes. São bonitas, principalmente para quem está possuído pelos vícios da gula, da preguiça e da pressa; vistosas, brilhantes de gordura e açúcar, enchem nossa boca com a massa macia. O creme, amarelo, impressiona pela doçura tanta, que faz enjoar.
Quem as procura pensa estar suprindo a necessidade da fome, que é real, mas te leva além: as bombas de creme preenchem o estômago mas fazem você explodir de prazer. Aparentemente sustenta o seu corpo e sua alma, mas não nutre. E ainda você corre o risco de ter uma grande azia e com o tempo, uma bela de uma diabetes.