O sagrado direito de respirar em um outro país
Conversa com meu filho de sete anos, e o Direito dos Estrangeiros
Meu filho de sete anos, o Daniel, para a nossa família o Niel, perguntou-me:
- Se você estiver em outro país, você pode ficar lá?
- Depende de várias coisas, filho. Se você foi passear, você pode ficar algum tempo, normalmente são três meses, depois é obrigado a voltar.
Detalhe, temos um mapa-múndi na cozinha e a filharada adora ficar procurando onde estão a Itália, Botsuana, Fiji, e o país que aparecer na conversa; além de uns jogos que eles inventam, de procurar a bandeira do país ou a capital etc.
Continuei explicando que, embora seja muito bom para todos os países deixar as pessoas entrarem para passear, a maioria dos lugares deixam, em outros é muito dificil. Alguns te colocam dificuldades, porque não querem que você veja algumas coisas... outros lugares são muito distantes, outros são muito perigosos, e nem vale a pena ir para lá, senão a gente pode até ser preso, se fizer alguma coisa que eles achem que é errado.
- É, pai? Em que países isso pode acontecer?
- Síria, Arábia Saudita, Indonésia...
Niel ficou pensativo. Porque nesta idade, eles querem “o mais difícil”, “o mais longe”, “o mais perigoso”, pensei que ele ia perguntar qual era o país mais perigoso do mundo, ou o mais difícil de entrar. Porém, crianças são crianças, e nem sempre elas são tão previsíveis:
- Mas se eu for preso lá, eu não posso fazer nada?
- Como assim, Niel?
- Tipo, eu posso comer?
- Claro que sim, eles são obrigados a te dar comida. Mas tem uns lugares que eles fazem maldades, como os terroristas que sequestram pessoas. Em alguns desses lugares, eles fazem os presos passar fome.
- O que é sequestrar?
- É levar as pessoas presas, sem que elas queiram. Depois que te prendem, eles pedem um dinheiro para poder te soltar.
- E se me sequestrarem em outro país, você pode ir me buscar?
- Eu vou fazer de tudo para ir te buscar... Mas tem pessoas que foram presas e até hoje não conseguiram ir buscar, e muitas dessas pessoas morreram.
- Pai, se eu estiver preso assim, nesse país, eu posso respirar?
Respirei fundo e parei, porque nunca tinha pensado nisso. Acabei respondendo que sim, pois fazer alguém deixar de respirar é matá-lo, e isso é errado. Quem prende as pessoas e não as deixa respirar faz algo errado e será punido, de uma forma ou de outra.
As crianças, principalmente nesta idade, se contentam com respostas simples às suas indagações, desde que o adulto – o pai, a mãe, a professora - as responda. Por isso, não entrei em detalhes sobre tortura com asfixia, presos políticos, máfias, polícia brasileira, nem sobre as práticas terroristas. Ele acabou dando-se por satisfeito e encerrou o assunto.
Fiquei surpreso porque percebi que o Niel entrou naquilo que São Tomás de Aquino chama de Idade da Razão, justamente os sete anos de idade. É sempre uma satisfação para os pais verificar isto - na verdade, estou tirando todos por mim, mas vá lá, dá um orgulho.
Niel investigou, num diálogo, digamos, pré-socrático, o direito ou a possibilidade de viajar para onde quisesse, e daí deduziu os princípios básicos que os romanos e toda a tradição ocidental chamou de Direito das Gentes – ou seja, o que podem e o que não podem fazer os estrangeiros.
Eis a parte didática que meu editor gentilmente diz ser “professoral”, e por isso, chata. Sou professor, fazer o quê: hábitos ruins não se perdem depois de velho, como cutucar a unha do dedão do pé com palito de dente.
Caso não goste de Direito e História, pule para o último parágrafo.
O Direito das Gentes, ou jus gentium, originou-se de uma série de constatações dos romanos antigos, que chegaram a conclusões que hoje entendemos simplesmente como “bom senso de uma pessoa civilizada”.
Surgiu justamente por causa da pergunta: como vamos tratar os estrangeiros? Eles não eram regulados pelo direito dos cidadãos romanos (o jus civilis), obviamente porque não eram romanos. Eles eram prisioneiros de guerra.
Jacques-Louis David. As sabinas. 1799. Museu do Louvre, Paris.
Eles podiam ser mortos? Tinham a obrigação de serem alimentados? Os que não fossem trocados por um resgate, seriam mortos ou escravizados? Se escravizados, tinham algum direito? Como tratar um estrangeiro de forma justa?
Pois não só os romanos, mas todos os povos do mundo, em alguma época, consideraram quem não era da tribo como “não humano”, inumano ou desumano. Não ser civilizado, não ter os mesmos costumes que os gregos e os romanos, assim como os egípcios e mesopotâmicos, antes, era o mesmo que ser um animal, um ser considerado inferior nesta época, e por isso, estranho. A origem da palavra “estrangeiro” em português é a palavra latina, romana, para “estranho”. O nome que povos indígenas brasileiros, africanos, australianos, dão a si mesmos, normalmente é “as pessoas” em sua própria língua, querendo dizer: “nós somos seres humanos, gente de verdade”. Os gregos também chamavam todos os estrangeiros de “bárbaros”, ou seja, pessoas que falavam “língua que não era de gente”, um monte de grunhidos incompreensíveis, bar, bar, bar... Escandalizados? Deem um google, minha gente, ou perguntem ao ChatGPT.
Com o tempo, os romanos desenvolveram a noção de que “ser justo” era algo para todos, e não só para cidadãos de Roma. Porque os romanos herdaram dos gregos algo que hoje é considerado arrogância: a certeza que eram um povo civilizado, e como tal, deviam se comportar. A justiça era parte do pacote de “povo civilizado”. Justiça como “dar aquilo que é de direito a cada um”, incluindo os peregrini, os estranhos de fora.
Ao reconhecer que os estrangeiros tinham alguns direitos (não todos) que os romanos também tinham, aos poucos foram reconhecendo implicitamente, e depois explicitamente, que os estrangeiros também eram seres humanos – mesmo reservando a si mesmos a superioridade cultural e moral.
Vamos combinar que a noção popular, ensinada a nós pelos filmes de Hollywood, quando sugere de forma bem marota que os romanos foram antecessores dos nazistas, é bem desonesta? Embora sejam pintados como crueis, e de fato foram em muitíssimas ocasiões, aos romanos devemos uma parte do nosso reconhecimento atual de que os seres humanos fazem parte da mesma espécie e que estamos todos no mesmo barco. O filósofo e dramaturgo Sêneca dizia que os escravos eram moralmente iguais aos seus senhores. Adiante.
Os prisioneiros capturados pelos romanos, desde as primeiras guerras que Roma promoveu, tinham o direito de não serem mortos por qualquer “louca” que desse na telha do general, centurião ou soldado que os aprisionava. Tinham também o direito de não serem torturados desnecessariamente e também de serem alimentados. Ou seja, de serem tratados com decência.
Tratar mal um prisioneiro ou matá-lo gerava muitas consequências. A mais óbvia era perder potenciais escravos. A outra, era faltar com o exemplo que os romanos procuravam dar aos povos que invadiam – esperavam que o inimigo tratasse os romanos capturados com a mesma justiça (Não riam. Era isso mesmo).
A mais grave, porém, era desonrar os deuses, o próprio nome e o da família, além de envergonhar a cidade de Roma. Os romanos davam a sua palavra de honra, e se não a honrassem, os deuses os castigariam, a vergonha cairia sobre si e a família, além da própria cidade de Roma. A honra era importantíssima no mundo antigo, e aí está a noção considerada antiquada do “fio de bigode” brasileiro – o empenho da palavra, com o risco de ter o nome manchado pela vergonha.
Graças ao alicerce da honra – um juramento para os deuses e para a nação, reconhecendo o direito natural (outro conceito fora de moda), comum a todos os seres humanos – quando preso, o direito de não ser morto à toa, de ser alimentado e, obviamente, respirar – que hoje, depois de quase três milênios de civilização, agora global, temos os direitos humanos.
Minha mente foi longe, a partir da curiosidade de uma criança, que perguntou, candidamente: eu posso respirar, se for preso em outro país? E infelizmente, hoje, a resposta é “não” para muitos lugares sombrios do mundo – Gaza, Síria, Irã -, onde a antiquada noção de honra não existe.
Pensando cá comigo que uma criança brasileira de sete anos entendeu que prisioneiros devem ter o sagrado direito de respirar, e os terroristas, além de outros personagens também já citados, não entendem isto... a tentação ronda minha cabeça para afirmar que seres humanos que não tratam outro ser humano com dignidade mínima, com os direitos mais básicos de sobrevivência – ser alimentado, não ser torturado, não ser violentado, ou qualquer outra agressão, além de ser morto sem possibilidade de defesa – não só são covardes, mesmo com justificativas políticas, religiosas e ideológicas. Mas seriam menos humanos que suas vítimas. Ou não seriam humanos, mesmo.
Mas passo raspando pela tentação, com a graça de Deus: na eventualidade da roda girar e se tornarem eles os prisioneiros, teriam que ser tratados como seres humanos, mesmo tendo sido crueis, violentos, assassinos e sanguinários. Mesmo eu, pessoalmente, achando que não merecem. O Direito Natural, o jus gentium, os Evangelhos, e todas as filosofias universalistas que consideram a Humanidade um só gênero, que todas as pessoas, sem exceção, têm chances iguais de sobreviver nesta Terra, me apontam o caminho para o norte da bússola moral, onde estão a decência, a honra e a justiça, mesmo que essas palavras hoje estejam fora de moda.