Patrimônio histórico e segurança não podem ser cobertor de pobre
Desvirtuar o uso do Coreto da Praça Central não deve ser solução para a falta de segurança
Imagem da proposta de novo uso do Coreto, feita pelo vereador Paraná (PSD)
A legislatura 2025-2028 da Câmara de Vereadores em Piracicaba começou animada, como relatado pelo Viletim. A primeira Reunião Ordinária do ano, realizada anteontem, 03 de fevereiro trouxe questões urgentes, outras não tão urgentes.
Vários nobres edis marcaram sua presença com discursos esquisitos, contraditórios e algumas bizarrices. Um deles me chamou pessoalmente a atenção, por se tratar de matéria que oculta um patrimônio histórico.
Se a sugestão do vereador Valdir Vieira Marques, o Paraná (PSD) for implantada, algo que foi exposto em dois minutos estará realizando o apagamento de mais de um século da memória histórica e cultural de Piracicaba.
O nobre vereador sugeriu utilizar o Coreto da Praça José Bonifácio como suporte estrutural para o estabelecimento de um posto da Guarda Civil Municipal.
Você pode verificar a fala do vereador no vídeo abaixo, extraído do vídeo integral da Reunião Ordinária de 03/02/2025 da Câmara de Vereadores. A íntegra da Reunião você pode assistir clicando aqui.
Três problemas apresentam-se na questão de se transformar o Coreto em um posto da GCM, dois deles somente arranhados de leve pelo vereador, e o segundo somente de forma muito indireta:
A falta de segurança: os cidadãos e suas famílias gostariam de frequentar a praça central como espaço de lazer e não querem, por se sentirem inseguros, devido à presença dos moradores de rua, que ocupam canteiros, calçamento e o Coreto como moradia semipermanente;
O problema social gravíssimo da presença destas pessoas em situação de rua, na praça José Bonifácio, na praça do Terminal Central e muitos outros locais pela cidade; entra ano, sai ano, a questão não é resolvida pelas autoridades públicas, que são as responsáveis pela zeladoria, segurança e gestão da ocupação urbana;
O risco iminente de desvirtuar um patrimônio histórico e cultural da cidade de Piracicaba, e da maneira proposta, não destruí-lo fisicamente, mas apagar sua presença, escondê-lo. Algo inadmissível para uma cidade que preza muito sua tradição cultural, especialmente a musical, representada ali pelo Coreto.
Esses problemas são significativos e importantes, os três, e não somente um deles. Centro-me no terceiro. Tenho plena consciência, porém, que sua resolução depende de se atacar os dois anteriores.
Coreto, em foto de 2023 Acervo da Câmara dos Vereadores de Piracicaba.
Reagir contra a ocupação de um Coreto de praça, resquício de uma época romântica, é ser muito nostálgico, dirão alguns. Cafona, piegas, sentimental, seja realista, pense nos problemas de agora!
Há muito tempo se perdeu o costume de ir à praça para se ouvir bandas ou conjuntos musicais ao vivo. O coreto não é mais usado para cumprir seu propósito. Para que, então, mantê-lo?
Além do mais, quem liga para o patrimônio histórico e cultural?, dirão outros tantos. Ficar olhando para o passado é andar para trás, e quem anda “de fasto” é caranguejo. O negócio é construir prédios e estruturas novos, modernos e adequados para o nosso uso atual.
E finalmente, para que manter um espaço onde se juntam moradores de rua, que fazem dali uma casa, oferecendo riscos de segurança para “os cidadãos de bem”, como apontou (indiretamente, com receio de ofender sensibilidades) o vereador Paraná?
Para ser justo: a sugestão do vereador não foi a de fazer o Coreto desaparecer. E sim, de lhe dar outra função.
Mas ao fazer isto, irá descaracterizá-lo. A única lembrança do Coreto será o seu formato. Sendo ou não pintado com as cores da GCM, não será mais coreto, será somente uma curiosidade, ou algo ignorado.
“Não vai desmanchar porque não pode, a gente sabe que é patrimônio histórico”, diz o vereador no vídeo. Um detalhe chato, que impede de colocá-lo abaixo com picaretas.
É muito triste verificar que Piracicaba está tendo sua memória apagada. Edifícios antigos desaparecem a torto e a direito. O poder público contribui sem remorso com esse apagamento, zelando mal pelos espaços sob sua responsabilidade, deixando-os que se degradem, ou designando-lhes outras finalidades.
Assusta passar por uma esquina ou outros locais verificar a desaparição de venerandos e belos casarões, como um dos da rua Governador Pedro de Toledo, próximo à Paulista. Teve destino indigno, tendo somente suas paredes aproveitadas, sustentando um moderno, funcional e horrendo comércio.
Imóveis como este são desvirtuados, descaracterizados, sob o motivo de adequá-lo aos usos atuais, e então perdemos mais um pedaço da nossa herança cultural.
Outro exemplo recente foi a perda da praça Antonio de Pádua Dutra, assunto de um dos nossos artigos aqui no Viletim, que não era bonita e estava degradada, mas era uma praça. Podia ter sido revitalizada como espaço público; a gestão cega de Luciano Almeida a transformou num estacionamento. Um colírio para os olhos de gente estrábica e ignorante. Na mesma linha… nem vou falar da antiga Pinacoteca.
A sugestão do vereador Paraná têm o “desmérito” de propor uma violência contra o patrimônio cultural e histórico, contra a memória da cidade. Coloca na frente a utilidade, a praticidade, e depois, pensa no patrimônio, como um estorvo, um obstáculo a ser superado.
Entendo perfeitamente que é preciso sim ser prático, muitos problemas são resolvidos com planejamento e execução visando funcionalidade e utilidade. Imóveis, praças e locais públicos são dinâmicos, precisam ser utilizados. Uma cidade precisa funcionar.
Mas o senso de continuidade, os elementos que nos ligam aos nossos antepassados, que chegaram ao território da atual Piracicaba um dia, e aqui construíram suas vidas, é o que dá o sentido de sermos piracicabanos. Temos uma identidade cultural forte, coesa, rica. Ela foi construída no passado e precisa ser mantida.
Manter nossa identidade é útil, mas de maneira diversa da entendida pela maioria como “utilidade”. Pois o significado de ser uma pessoa, inserida em uma sociedade, não é só comer, dormir, estar seguro, educar-se, ter saúde. Este significado inclui o lazer, a cultura, as artes, os esportes, a religião - atividades que fazemos não porque somos obrigados ou morreremos sem elas, mas porque nos dá o sentido de Humanidade.
A praça José Bonifácio, em parte ainda soa como uma “praça à moda antiga”, com postes de iluminação que remetem aos postes de iluminação a gás, ajardinamento e edifícios antigos em estilo eclético, milagrosamente preservados, como o do Rádio Difusora, do Clube Coronel Barbosa e do antigo Fórum (na esquina da rua Prudente de Moraes com a Santo Antônio), este em art déco.
O Jardim Público, cerca de 1920. Acervo da Câmara dos Vereadores de Piracicaba.
Outros edifícios ajudam a compor essa atmosfera: a própria Catedral de Santo Antônio, no local de três encarnações anteriores da Igreja Matriz; de um lado, o antigo prédio da Empresa Elétrica e depois CPFL, em estilo neoclássico inglês, com tijolinhos à vista, na rua Boa Morte; do outro, os edifícios Georgetta Dias Brasil e Santo Antônio, entre os primeiros edifícios de vários andares da cidade, na base da Galeria Gianetti, e a própria; e o fantasma do Comurba, cujo estacionamento ainda é utilizado pela prefeitura, e integra a memória coletiva local com muitas histórias.
Poderia citar muitas outros elementos que compõem a cena da praça central. Já foi uma: Largo da Matriz, com o Rossio em torno. Já foi três: Largo da Matriz, Jardim Público e Largo do Teatro; depois, Praça da Catedral, Praça 7 de Setembro e Praça José Bonifácio. Na década de 1980, voltou a ser somente uma, Praça José Bonifácio.
O patrimônio que restou, devido à ação de alguns agentes preocupados e também por milagres ou indiferença, sobreviveu depois de muitas intervenções, apagamentos e destruições de governantes e particulares.
Já tivemos arrancado do local o antigo Chafariz, uma joia perdida em algum dia da década de 1950, transportado sabe-se lá para onde (dizem que para a chácara de um político local. Não há confirmação do fato, mas...)
Chafariz do antigo Jardim Público. Acervo da Câmara dos Vereadores de Piracicaba.
O Hotel Central, residência do senador Nicolau Vergueiro, um dos pouquíssimos testemunhos de arquitetura residencial palaciana do século XIX, local onde faleceu o pintor Almeida Júnior, onde se hospedavam os ilustres visitantes “de fora”, foi criminosamente demolido na calada da noite, em 1982.
Hotel Central. Foto acervo Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, publicada no blog “A Foto e a História”, de Edson Rontani Jr.
O Monumento ao Soldado Constitucionalista, depois de arrancado pelo prefeito Senhor Escavadeira (sim, João Hermman Neto, estou olhando para você), voltou à praça, embora não ao mesmo local de origem, que era o ponto onde os soldados partiram para as batalhas da Revolução de 32.
O primeiro Coreto da praça, de 1893, foi outra vítima da cegueira dos governantes, pois foi demolido em 1943. Não há informações precisas, mas parece ser próximo daquele ano o atual Coreto.
E o que talvez seja o maior dos crimes à lesa-memória piracicabana já perpretados, ao lado da demolição do Hotel Central: a demolição do Teatro Santo Estevam, em 1953, um edifício valiosíssimo para a história artística piracicabana, uma atentado contra um povo que preza tanto a cultura.
Teatro Santo Estevam, no Largo do Teatro. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba. Fonte: site da ACIPI.
Digo que, além do rio Piracicaba, o Salto, a Rua do Porto, o Engenho Central, locais que são mesmo a “pia batismal” do nosso povo, como diz Cecílio Elias Netto, há poucos locais tão marcantes para o piracicabano como a Praça José Bonifácio.
A praça já foi o local mais importante da cidade, com comemorações cívicas e festas memoráveis, como a do Bicentenário em 1967. Sabendo disso ou não, quem ama a “Noiva da Colina” quer que a praça central recupere a importância, volte a ser um lugar onde a música ao vivo volte a soar aos ouvidos.
Mas também manifestações artísticas como circo, teatro, festas, artes visuais; esportes, dança, e tudo o mais que traga vida à convivência coletiva, ao lazer, tudo com segurança garantida pelas guardas e polícias devidas.
Para ficar somente na Arte Musical, representada pelo Coreto, que se faça justiça à nossa riquíssima tradição, representada não só pela Banda União Operária, Orfeão Piracicabano, Orquestra Sinfônica de Piracicaba, Orquestra Jovens Músicos, compositores e musicistas como os irmãos Fabiano e Lázaro Lozano, Benedito Dutra Teixeira, Erotides de Campos, Ernst e Cidinha Mahle, cururueiros como Nhô Serra, Parafuso, Moacir Siqueira, seresteiros como Pedro Alexandrino, Cobrinha e Chicoca, as duplas caipiras Mandi e Sorocabinha, Craveiro e Cravinho. Felizmente, há muitos outros, de vários outros gêneros, que não citei mas são igualmente representativos.
Coreto da praça José Bonifácio, em aquarela de Denise Storer. Fonte: site da Academia Piracicabana de Letras.
Os problemas da falta de segurança pública e da situação de risco gravíssima das pessoas em situação de rua devem ser resolvidos urgentemente. Mas não à custa de se descaracterizar um patrimônio histórico-cultural, sob risco de se causar um outro problema.
Parece desimportante a readequação de um espaço que está, com certeza, subutilizado e neste momento, com sua função desvirtuada. Mas a memória é importante, a preservação do passado é vital, sob risco de nos esquecermos de quem somos, qual herança recebemos dos nossos ancestrais. É cuspir na memória daqueles que tanto se esforçaram para construir o que temos hoje, não só materialmente, mas artisticamente, culturamente, espiritualmente.
Não se transforme o Coreto da Praça José Bonifácio em um cobertor de pobre, sob motivo de se abrigar um posto da Guarda Civil. O cobertor de pobre é curto, não resolve o problema do frio, como diz o antigo ditado:
Cobre os pés, descobre a cabeça; cobre a cabeça, descobre os pés…
Muito bem!!