República Socialista de Piracicaba ou o Reino de Piracangalha?
Relatos dos anos 80 em uma cidade do interior
Imagem:
Desenho de Paulo Von Poser. Exposição “Algumas cores de Piracicaba”. 9 de novembro de 1984
Por Renato Ferrante*
1984, o terrível ano previsto por George Orwell havia enfim chegado. Nada de extraordinário acontecera até então no planeta Terra e naquele dia perdido de agosto, no meio da tarde quente, eu conversava animadamente com o artista plástico Ermelindo Nardin, em uma das pequenas salas administrativas do Teatro Municipal, onde então funcionava a Coordenadoria de Ação Cultural de Piracicaba, com entrada pela rua Gomes Carneiro, pouco mais de duas quadras distantes de onde eu residia. Aguardávamos Cláudia Paleo, coordenadora dos projetos culturais da secretaria, para uma reunião sobre a organização do 17º Salão de Arte Contemporânea da cidade.
O homem e sua obra
Poucas semanas antes eu adentrara na mesma sala pela primeira vez, acompanhado do arquiteto Juarez Borges – outro recém-chegado a Piracicaba – um tanto quanto intimidado pela figura de Nardin e do que resultaria desse encontro inicial sobre o SAC. Afinal, a fama precedia o homem e não era pouca. Um ano antes, o Masp, o mais importante museu de artes do Brasil, havia exibido seus trabalhos em uma exposição individual e patrocinara ainda a publicação de um livro sobre sua obra, com texto do crítico de arte Jacob Klintowitz. As pinturas, desenhos e abstrações de Nardin, onde “um mundo fantástico se abre para atingir um estado de liberdade absoluta”, comentário de um outro crítico, já faziam parte do acervo de museus, galerias e centros culturais do Brasil e vários países pelo mundo. Ermelindo era um artista contemporâneo brasileiro imensamente bem-sucedido, e o fato de ter nascido em Piracicaba... bem, deveria ser motivo de orgulho para a cidade, mas que importância isso poderia ter para ele? Pois tinha muita importância, como mais tarde eu descobriria.
Apresentamo-nos, nos cumprimentamos e sentamos os três nas cadeiras dispostas diante da mesa de Cláudia Paleo. Para quebrar o gelo e tentar iniciar a conversa, comecei a balbuciar algumas palavras e a mágica aconteceu. Logo descobrimos que éramos ambos filhos de pai comunista e começamos a relatar um ao outro uma série de coincidências e fatos idênticos em nosso ambiente familiar e a mesma conturbada relação paterna. Entre lembranças hilárias e risadas, logo nos tornamos melhores amigos e irmãos de criação soviética. Eu estava a contar sobre o primeiro grande conflito ideológico entre meus pais, logo após a lua-de-mel, uma disputa sobre qual objeto deveria ornamentar a parede do quarto do casal: se o Cristo crucificado, posição defendida pela minha jovem mãe e católica fervorosa, Theresa de Moraes Ferrante, ou um imenso pôster de Stalin que meu pai - Guilherme Ferrante, um dos líderes do Partido Comunista na cidade - possuía. Foi quando Cláudia Paleo, incomodada pela conversa sem fim, nos interrompeu para dar início à reunião.
Nós quatro estávamos ali reunidos graças a um edital publicado meses antes pela Secretaria de Cultura, convidando os artistas e agentes culturais da cidade para a apresentação de propostas de renovação do Salão de Arte Contemporânea da cidade. A abertura para a participação da classe artística local foi uma das primeiras iniciativas do novo diretor da Cultura, Antonio Roberto Dihel, funcionário de carreira nomeado pelo então prefeito Adilson Maluf para suceder o ex-diretor Alceu Marozzi Righeto, que caíra em desgraça após o escândalo provocado pela denúncia do jornalista, crítico cultural e diretor de teatro, José Maria Ferreira, publicada na edição de março de 1984 da revista Galeria, editada por Rogério Vianna. Na reportagem, Zé Maria, como era conhecido, revelava a existência de um inquérito administrativo da Prefeitura investigando Righetto pela “apropriação” de obras de arte da Pinacoteca Municipal e outras irregularidades.
República Socialista de Piracicaba ou o Reino de Piracangalha?
Não era a primeira acusação contra o então diretor da Coordenadoria de Ação Cultural, que já havia sido anteriormente denunciado por funcionários da própria secretaria por se “apropriar”, digamos assim, de bilheterias de shows e espetáculos, fato também noticiado pela mídia da época.
Righetto já vinha no cargo desde a gestão anterior do prefeito João Hermann Netto, um político do PMDB que havia se convertido à esquerda e vencido a eleição municipal de 1977, inaugurando o que o jornalista e escritor Cecílio Elias Netto chamou de “República Socialista de Piracicaba”. Uma de suas primeiras medidas foi justamente atender uma antiga reinvindicação dos artistas da cidade e criar uma secretaria destinada à cultura. Mais ainda, concluiu no ano seguinte as obras do Teatro Municipal, paralisadas há anos, entregando um novo e inédito espaço cultural para a cidade e seus produtores culturais.
As boas novas e as expectativas com a possibilidade de apoio da secretaria e o uso do novo teatro para exibição e apresentação de artistas locais, foram, porém, logo frustradas. Já ao assumir, em 1977, Righetto apressou-se em dizer, em entrevista ao Jornal de Piracicaba: “Não estamos preocupados com a elite. Queremos fazer um Teatro Municipal para o povo”. Enquanto trabalhava para distribuir os finos biscoitos do socialismo para as massas ignaras da cidade, seja lá o que isso for, a Ação Cultural de Righetto implantava também uma política de hostilidade e portas fechadas para a produção “da elite” artística local. Apesar da oposição crescente do meio cultural, manteve-se firme no cargo e permaneceu na gestão da Ação Cultural até os primeiros anos do governo do novo prefeito – Adilson Maluf –, quando explodiram novas denúncias e até passeatas de rua aconteceram, pedindo sua demissão.
“A [Coordenadoria de Ação Cultural] tornou-se o principal empecilho para a produção cultural em Piracicaba”, dizia a abertura de uma extensa matéria da primeira edição da Revista Galeria de maio/1983, assinada pelo jornalista Sílvio Diogo da Silva. Com o título de “Piracicaba: A Nova Iguaçu da cultura brasileira”, fazendo referência à cidade que então era sinônimo de violência e corrupção no noticiário nacional, a matéria, apoiada em depoimentos de Maria Dirce Lacorte (dança), Ermelindo Nardin (artes plásticas), Ernst e Maria Aparecida Mahle (música), Berenice Danelon, José Maria Ferreira (teatro), e Renata Toledo Leme (ex-diretora da Casa de Artes Plásticas – antiga Pinacoteca) insinuava que o mandato de Righetto era mais um caso de polícia do que de cultura. “A Ação Cultural tornou-se um órgão de anticultura”, dizia na mesma edição José Maria Ferreira, um crítico ferrenho de Righetto, que passou a ironizar o autoritarismo e as denúncias de corrupção do Comissário do Povo para a Cultura de Hermann Netto, chamando-o de “Ministro Plenipotenciário da Cultura do Reino de Piracangalha (ex-República de Piracity)”.
Por sorte ou azar, tive também a minha breve experiência com Righetto e conheci seus métodos. Em uma reunião com ele no início de 1984, eu e Juarez Borges apresentamos um projeto de programação cultural para o ano que se iniciava: uma série de eventos em diversas áreas artísticas – artes plásticas, cinema, ciclos de debates, literatura, música, etc – organizadas em torno do conceito de “1984”, o livro de Orwell. A proposta era viabilizar os eventos por meio de uma colaboração entre a Ação Cultural e o “Asfixia Urbana”, um grupo de “intervenção cultural” que eu, Juarez Borges e minha irmã, Márcia Ferrante havíamos criado e para o qual eu tinha até redigido um manifesto. Righetto ficou de analisar e nos dar uma resposta. Dois dias depois, resolvi voltar ao Teatro, onde ficava a sede da Ação Cultural, para acrescentar um novo item ao projeto. Ao adentrar no saguão, tive uma surpresa. Um cartaz em papel kraft, mal e porcamente redigido a mão, em pincel atômico, anunciava a exibição de filmes do Novo Cinema Paulista, um dos eventos que constava em nossa proposta. O homem não perdera tempo em surrupiar uma de nossas ideias e apresentá-la como iniciativa da Ação Cultural. Foi inevitável chegar à conclusão de que, assim como se apropriara da autoria desse evento menor, se apropriaria dos demais. “Fomos feitos de otários”, comentei com Juarez Borges. “Entregamos o projeto de graça para o efedapê faturar em cima”. Semanas depois, no entanto, veio a boa nova: Righetto caiu.
A queda do primeiro diretor da Ação Cultural contribuiu, e muito, para o que eu chamo de “o grande destape”, o início de um novo ciclo de agitação cultural na cidade, um alegre desbunde artístico que se manifestaria nos eventos do próprio SAC de 84 e em diversas iniciativas culturais que aconteceriam ao longo dos próximos anos, algumas com apoio da própria Ação Cultural, que finalmente abriu suas portas aos criativos da cidade e começou a atuar segundo os propósitos para a qual fora criada. Os anos 80 e o pós-moderno começavam a chegar à então provinciana Piracicaba e eles eram transgressores, coloridos, alegres, cheios de arte e diversão e uma trilha sonora impecável. Anos fugazes, porém. (continua)
Próximo capítulo:
UMA PINACOTECA ABERTA AO PÚBLICO E OCUPADA POR CAVALOS, FENO E CAPIM.
O projeto de Ermelindo Nardin que causou choro e ranger de dentes.
*Renato Ferrante é editor em Três Gatos Editora e está escrevendo um livro sobre os anos 80 em Piracicaba
Texto incrível!