Técnica permite estimar a força que atua sobre cada grão de areia de uma duna
Aplicações possíveis de estudo realizado na Unicamp vão do controle do assoreamento de rios e da erosão de praias a prospecções sobre a evolução da superfície de Marte
Missão impossível: embora a observação da forma e movimento de uma duna barcana (com formato de lua crescente) permita inferir dados sobre direção e intensidade média dos ventos, o cálculo da força resultante sobre cada grão de areia era considerado fora de alcance (imagem: Wikimedia Commons)
Pesquisadores brasileiros desenvolveram uma técnica que permite estimar, a partir de imagens, a força exercida sobre cada grão de areia em uma duna. O método, baseado em simulações numéricas e inteligência artificial (IA), revoluciona a forma como se estuda a dinâmica de sistemas granulares e abre caminho para investigar processos físicos que antes era impossível medir. As aplicações vão da engenharia civil à exploração espacial. Os resultados foram publicados no periódico Geophysical Research Letters.
O foco da pesquisa foram as chamadas “dunas barcanas” – estruturas com formato de lua crescente, cujas pontas se orientam no sentido do fluxo do vento ou da água. “Essas dunas aparecem em ambientes muito distintos: o interior de tubulações, os fundos de rios e de mares, os desertos terrestres e até na superfície de outros planetas, como Marte. Essa forma de lua crescente é um atrator. Então, basta ter uma quantidade razoável de grãos sobre um solo não erodível e um fluido escoando de modo unidirecional para que uma barcana se forme”, explica Erick Franklin, professor da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual de Campinas (FEM-Unicamp) e coordenador do estudo.
As escalas envolvidas variam enormemente: em ambiente aquático de laboratório, elas podem ter apenas 10 centímetros e completar um deslocamento em menos de um minuto; nos desertos da Terra, medem em torno de 100 metros e se movem ao longo de um ano; em Marte, podem alcançar 1 quilômetro e levar cerca de mil anos para se deslocar. “Apesar dessa diferença de escalas, a dinâmica subjacente é muito parecida”, ressalta Franklin. E é isso que possibilita fazer predições sobre a evolução da superfície de Marte a partir de uma pequena duna de laboratório.
Embora a simples observação de sua forma e movimento permita inferir informações sobre a direção e intensidade média dos ventos, conhecer a força resultante sobre cada grão de areia sempre foi considerada uma missão impossível. É fácil entender por quê. “Uma duna subaquática de laboratório pode ter 100 mil grãos, cada um com 0,2 milímetro de diâmetro. Para medir a força atuante sobre cada um deles seria preciso colocar um acelerômetro minúsculo em cada grão, algo que simplesmente não existe. Em dunas dos desertos terrestres, o número de grãos sobe para 10¹⁵ [1 quatrilhão], e, nas dunas de Marte, para 10¹⁷ [100 quatrilhões]”, detalha o pesquisador.
Mesmo com câmeras de alta velocidade e técnicas avançadas de medição de movimento, a força individual atuante nos grãos sempre esteve além do alcance experimental. A solução encontrada foi combinar experimentos laboratoriais de dunas subaquáticas, que se formam e se movem em questão de minutos, com simulações numéricas nas quais a dinâmica (forças e movimentos) de cada grão pode ser calculada a cada instante.
Essas simulações, de alta resolução espacial e temporal, reproduzem com precisão as dunas observadas nos experimentos e fornecem mapas de força impossíveis de serem obtidos diretamente em larga escala.
O estudo pareou, então, as imagens reais das superfícies das dunas com os mapas de força produzidos pelas simulações, fornecendo, para cada grão, um par de dados: imagem e força. “Com base nisso, treinamos uma rede neural convolucional para estimar as forças resultantes atuando sobre os grãos de dunas reais”, relata Renato Miotto, pós-doutorando na FEM-Unicamp e pesquisador visitante na Syracuse University, nos Estados Unidos.
Uma rede neural convolucional (CNN, na sigla em inglês) é um modelo de inteligência artificial projetado para processar dados com estrutura espacial, como imagens. Ela usa camadas de convolução, que aplicam filtros sobre pequenas regiões da entrada para detectar padrões locais (bordas, texturas, formas) e gerar mapas de características. Com várias camadas, a CNN combina padrões simples em estruturas complexas, permitindo reconhecer objetos, classificar imagens ou extrair informações de forma automática e eficiente.
As CNNs são amplamente usadas em visão computacional, reconhecimento facial, análise médica e outras tarefas de detecção e classificação. “No estudo, a rede foi capaz de inferir a distribuição de forças a partir de simples imagens de dunas e até generalizar suas previsões para formatos que nunca tinha visto antes”, pontua Miotto.
William Wolf, professor da FEM-Unicamp e coautor do estudo, ressalta que o processo exigiu um cuidado especial na preparação dos dados: “Usamos simulações tridimensionais de alta fidelidade, que permitem obter alta resolução das escalas espaciais e temporais, o que nos deu um nível de detalhe muito próximo da realidade. Dessa forma, detalhes da dinâmica e morfologia das dunas foram aprendidos pela CNN, e esses são parâmetros essenciais para que a rede pudesse generalizar para imagens experimentais”.
Aplicações
Miotto acrescenta que a metodologia não se limita à areia: “Qualquer sistema granular visível por imagem – seja gelo, sal ou partículas sintéticas – pode ser analisado, desde que exista uma simulação capaz de reproduzir bem o comportamento do material”.
Segundo os pesquisadores, a técnica pode ser adaptada para estudar outros sistemas formados por partículas em movimento e enfrentar problemas concretos, como assoreamento de rios, erosão de praias, movimentação de areia em portos e escoamentos industriais. “Esses processos têm custos econômicos enormes e afetam comunidades inteiras. Ferramentas como esta podem ajudar a prever e mitigar danos. No caso de Marte, é possível inferir, a partir de imagens amplamente disponíveis, a intensidade dos ventos no passado e a evolução das dunas no futuro”, enfatiza Franklin.
(a) Vista superior de duna barcana subaquática obtida a partir de simulação numérica, mostrando sua topologia. (b) Forças instantâneas sobre a duna, calculadas por simulação numérica. (c) Predição das forças obtida por rede neural convolucional (CNN). (d) Histórico temporal da força indicada. (e) Vista superior de duna subaquática obtida a partir de experimento. (f) Forças instantâneas sobre a duna real, estimadas pela CNN (imagem: Erick Franklin et al./Geophysical Research Letters)
Wolf destaca o caráter colaborativo do estudo: “Trabalhamos juntos há anos, unindo competências em física de escoamentos, mecânica dos fluidos e análise computacional. É um exemplo de como o apoio contínuo à pesquisa básica pode gerar avanços com impactos em múltiplas áreas”.
O estudo recebeu apoio da FAPESP por meio de seis projetos (13/08293-7, 18/14981-7, 19/17874-0, 21/06448-0, 22/01758-3 e 22/09196-4).
O artigo Resultant force on grains of a real sand dune: how to measure it? pode ser acessado na íntegra em: https://agupubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2025GL116942.
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP