Tese em causa própria
Mas acho que pode sintetizar o momento de muita gente
A forrozeira Evinha me mostra um triângulo e eu vejo no instrumento a síntese de uma tradição. O caipira entende de forró, porque entende de festa popular, que era a sua essência emotiva. Simples assim. Na roça, os encontros eram na base da música, da viola e do forró. Muita coisa improvisada e única acontecia para que os participantes tivessem a certeza de que apreciavam um momento inesquecível e único, que jamais seria reproduzido. Quem não foi, perdeu!
Com o poder de registro atual, as novas tecnologias demarcam a presença virtual. Quem não foi, não perdeu. Então não fui. Então não vou. Porque eu nunca perco. Pode isso?
Primeiro veio o rádio. A gravação radiofônica enterrou a modinha. Pode perguntar para Mandy e Sorocabinha, eles garantem. A entrevista do artista está no Museu da Imagem e do Som (MIS). A modinha era modinha mesmo. Assunto que estava na moda, na sociedade, na cabeça das pessoas, virava música. Aí entrava até política. Música era também crítica social. As pessoas ouviam, assimilavam e riam de forma compartilhada. Isso era um compartilhamento possível de se fazer.
As pessoas falam sobre o tempo da modinha sem saber da sua essência. No mundo atual, acabou o espaço para a modinha propriamente dita, porque ela era coisa do momento, o registro vivo e real de uma circunstância, de um acontecimento coletivo, e uma vivência, que sintetizava uma tradição viva, uma cultura, algo que não se repetia. Era sempre inédita e digna de apreciação para se contar. Quem perdia a oportunidade de estar presente no evento, perdia mesmo! Por isso, a importância de ir para a festa.
Mas a gravação eternizou o momento. Dá para entender? Eternizado, o momento desapareceu como tal, como inédito e exclusivo. Perdura apenas como história, porque pode ser recuperado em partes como ele foi e essa recuperação pode ser manipulada pelos seus contadores, até mesmo por quem não esteve lá. Uns historiadores são bons nisso, outros, nos envergonham. Assim, nós perdemos a noção de momento como uma circunstância específica, que não se repete, uma circunstância a ser imaginada, que os antigos contam para os mais jovens como uma tradição. Aí entra mais filosofia.
Mas a questão central não é esta. Há um osso de frango entalado no pescoço da moçada acima de 50 anos que não sobe nem desce e está relacionado ao maravilhoso mundo novo em que vivemos. Participei dos debates pré-celular. Melhor, antes de ele se tornar a síntese da vida atual. Tínhamos a certeza, nos anos 80 e início de 90, de que algo árido estava por vir. E a aridez chegou com tudo. Era mais do que a eternização do momento, era a coletivização da eternidade vazia.
Se não acerto no varejo, acho que faço sentido no atacado. A não ser que as redes sociais se tornem territórios exclusivo do marketing e da infantilidade.
Jornalistas e colunistas dos anos 30/40/50 sabiam da importância histórica do que estavam fazendo e, por isso, davam o seu melhor para ficarem na memória dos seus. Virava arte tudo o que escreviam, ou quase tudo. Jornalistas e colunistas dos anos 60/70/80 ainda pensavam como seus antecessores, com uma pitada de renovação da linguagem. Elis Regina não me deixa mentir, era “como os nossos pais”. Porque perdurava ainda o sentido da arte, o desejo do belo, mesmo que diante de uma modernidade horripilante e carregada de ruídos. Pela peneira desse tempo passavam sempre os melhores e existiam de fato os gigantes.
Os escritores, evidentemente, também eram colunistas dos grandes jornais. Havia uma bela sinergia entre redações de jornais e cultura livresca. Escritores, jornalistas e colunistas se complementavam. Só que o mundo inteligente perdeu o lugar para o mundo sensorial e as redes sociais solaparam a tradição cultural de forma inculta e torpe, por quem tem relação baixíssima com a arte e com a cultura. Hoje o celular fala mais do que a tradição. A maioria dos blogueiros e influencers representa um mundo de jovens que se relaciona com blogueiros e influencers. Hermetismo puro.
Uma entropia exclui os seres com mais de 50 anos, que vivenciaram a riqueza dos tempos anteriores. Se eles, os velhos, insistirem em ficar de fora, estão perdidos. Mas estão perdidos também tentando entrar em um mundo vazio para não morrerem definitivamente. Por isso são obrigados a fazer papel de bobo. O que é papel de bobo? É esquecer o que sabem para dar razão apenas a quem domina a tecnologia, os jovens. Se é isso, façamos assim, diz a regra geral. Sendo assim, o conteúdo se esvai e fica apenas o aparente, a casca, o superficial. Coisa de gente boba.
É preciso haver uma revolução dos velhos para que os jovens deixem de achar o mundo fácil. O mundo não é fácil de ser compreendido. A vida não é fácil de ser administrada. Criptomoedas não são a síntese do mercado financeiro e ganhar dinheiro com elas não é entender de muita coisa. Dominar as redes sociais é apenas uma circunstância. As circunstâncias mudam e é preciso se preparar para esta mudança.
Se a viola é síntese de uma tradição, se o triângulo e a sanfona são a síntese de uma tradição, o mundo das redes sociais precisa também de uma tradição, para fazer sentido. Mas está tudo nos avessos. O caminho se inverteu e a batalha avessa tornou-se, por sua vez, fundamental. País desenvolvido é aquele que dá respostas adequadas a essa lógica inversa, em que os indivíduos com mais de 50 anos não se encontram em sua essência, porque são reféns de jovens que desconhecem o sentido de uma tradição. Se seguirem sozinhos, os jovens irão como um contêiner chinês carregado de bugigangas. Produtos para gente vazia. Como aliados, as velhas e as novas gerações podem vencer a batalha e criar um mundo novo, com sentido.




