Um artista pioneiro de uma geração injustamente esquecida
"Chegando a esta antiga Piracicaba, seguindo as pistas da passagem de sua figura, vemo-nos em uma cidade completamente diferente da que conhecemos"
Neste livro se revela o artista que desenhou e publicou a – provável - primeira charge na imprensa de Piracicaba, em 1917.
O mesmo artista cujas obras fizeram a – provável – primeira exposição individual de artes plásticas na cidade, no mesmo ano.
A primeira que se pode chamar entre nós, com estilo, propriedade e número de obras, “exposição individual de pinturas”.
E ainda foi um dos três artistas da – provável – primeira exposição coletiva piracicabana de artistas plásticos em 1920, com Ida Schalch e Joaquim Bueno de Mattos.
Duas, três probabilidades somam uma certeza? Não somam, mas multiplicam a curiosidade: onde há fumaça há fogo. Fogo de criação, fogo de artista empreendedor. Quem é este?, perguntamos ansiosos, querendo apagar o nosso fogo da santa e enxerida curiosidade.
Francisco Ferreira nos leva a uma Piracicaba que conta cem anos menos que a nossa. Busca nesta antiga cidade um ancestral, seu tio, que se revela um “homem dos sete instrumentos”, encarnado em variados nomes artísticos e assumindo várias funções e tarefas, movendo-se nas frestas do pouco que nos restou, escondido nos vestígios do tempo.
Personagem que levanta perguntas, nem todas respondidas completamente:
Onde publicou o cartunista e ilustrador Setarpo? Onde estão as te las do artista plástico Octavio Prates? Quem teve aulas ou estudou na escola onde era professor e diretor Octavio Prates Ferreira?
E várias outras, algumas formuladas e respondidas ao longo deste livro. Chegando a esta antiga Piracicaba, seguindo as pistas da passagem de sua figura, vemo-nos em uma cidade completamente diferente da que conhecemos. Esta cidade foi a mãe de muitos artistas, intelectuais e pedagogos, muitos de quem nos orgulhamos hoje, criadores da tradição artística que forjou os apelidos de “Atenas” e “Ateneu” paulistas.
Esta Piracicaba, vivente em um passado já longe, fazendo brotar pintores, jornalistas, educadores e empreendedores, insiste em chegar a nós, ressuscitando em bancos de da dos online, em plena era ultratecnológica - seus ecos impressos em ilustrações impressas em livros de papel, em desenhos publicados em jornais que hoje estão amarelados, em pinturas que aparecem sem convite em exposições ou em leilões de arte na internet. Ou em belas canções, volta e meia ouvi das em concertos por aí, na Esalq, nos teatros ou na Es cola de Música do maestro Mahle.
Ferreira já nos levou a outras duas Piracicabas, em seus livros anteriores. Em “Noites de Pira” era a cidade das décadas de 1960 e 70, em pleno desenvolvimento, com vontade de ser moderna, e por isso muito mais ousa da que a atual. Em seu segundo livro, “A Passagem da Cidade”, visita a Piracicaba na transição entre os séculos 19 e 20, que lançou a base, com mui ta competência e também poesia, para a cidade das “Noites de Pira”.
É nesta se gunda Piracicaba para onde ele retorna, pelo menos de 1900 em diante, desta vez para mostrar, através da figura de Octavio Ferreira já nos levou a outras duas Piracicabas, em seus livros anteriores. Em “Noites de Pira”, era a cidade das Prates, que a pequena cidade, tendo assumido a missão de prover escolas com educação com qualidade, gerou frutos e os espalhou além de seus li mites geográficos.
Ele mostra os membros da “Tur ma de Piracicaba do Estadão”, toda uma geração atuante principalmente na imprensa, meio artístico e debates políticos sobre educação na capital paulista, nas décadas de 1910 a 1950, formados na Escola Normal de Piracicaba. Como Prates, que fez parte deste “caldo cultural” e é legítimo integrante desta turma.
Setarpo / O. Prates, tendo sido pioneiro em Piracicaba como cartunista e pintor, participou da movimentação desse “caldo cultural” tão singulares. Tão singulares que a cultura paulista, e não só piracicabana, do século XX, não pode retirar suas contribuições sob risco de ficar desfigurada. Contribuições ousadas, modernas, afinadas com o debate público da época, tanto artístico quanto social.
Injustamente, Prates e seus companheiros foram “esquecidos no pó” desta avançada Piracicaba, afinada com os grandes centros, participante ativa dos debates públicos nacionais. Por mais contraditório que pareça, essa cidade era mais moderna e desenvolvida há cem anos do que hoje, a Piracicaba da Era da Internet Global.
O livro de Francisco Ferreira res gata ao menos uma parte do fogo do “Senhor Delicadeza” e seus parceiros de geração da fumaça do tempo pas sado, onde lado a lado aguardam pela nossa visita.
FÁBIO SAN JUAN é artista gráfico, historiador cultural e crítico de arte.